Os influencers foram o seu objeto de estudo na tese que apresentou para a obtenção do grau de Mestre em Nutrição Clínica. Porque escolheu este grupo de comunicadores?
Em consultas de nutrição sou muitas vezes confrontada pelos meus pacientes com dúvidas que trazem e informação que foi veiculada por influencers. Entre os conteúdos mais observados nas redes sociais estão a partilha de alimentos e comportamentos alimentares. Neste âmbito, muitos dos conceitos transmitidos pelos influencers não estão corretos. Não obstante, as pessoas seguem estes influencers e acham que por essa via podem adquirir melhores hábitos alimentares. Iniciei as minhas consultas em 2009 e, de lá para cá, percebo o crescimento do fenómeno e de como as informações transmitidas são percecionadas como verdadeiras quando não têm aderência à realidade. O estudo veio demonstrar isso mesmo.
Como fez a escolha de influencers que incluiu no estudo e como os caracteriza?
Analisei conteúdos públicos de influencers portugueses com mais de 100 mil seguidores e que tivessem, nos últimos seis meses, no feed do seu Instagram, conteúdos relacionados com alimentação, nutrição e saúde. Analisei mais de 780 conteúdos de 42 influencers. Perto de 71% eram do género feminino, 11,9% possuíam licenciatura em dietética e nutrição. Os influencers foram selecionados com recurso a um motor de pesquisa, o Brinfer, onde se encontram registados todos os influencers portugueses.
Quais são os objetivos que movem estes influencers?
Há sem dúvida um objetivo comercial. Quase 50% dos 788 conteúdos que analisei tinham publicidade. Posso citar-lhe aquilo que sublinho no trabalho e que, julgo, é ilustrativo: “a comunicação exercida pelos influencers baseia-se na tentativa destes se tornarem especialistas em temas específicos, como a nutrição, com a intenção de aumentarem a taxa de engagement. Há também o esforço em promoverem o seu personal appeal para os seguidores, criando mais pontos em comum entre eles, para ganharem confiança e fortalecerem a sua própria identidade de marca. Na partilha das vantagens e afinidade pessoal por marcas ou produtos, sendo que em momento algum é partilhado o modelo de negócios subjacente”.
A Joana Ramos partiu para esta tese com um pressuposto: “A utilização de redes sociais e a exposição a conteúdo baseado em imagens tem-se associado a uma imagem corporal mais negativa e a escolhas alimentares menos saudáveis em jovens adultos vulneráveis a influência das redes sociais”.
Gostaria de analisar algumas questões: Porque é que a exposição a conteúdo baseado em imagens se associa a uma imagem corporal mais negativa?
Porque a exposição a estes conteúdos impulsiona a comparação. Numa época anterior às redes sociais comparávamo-nos com atrizes e atores de cinema, com músicos, modelos, pessoas reais, que existiam. Atualmente, comparamo-nos com avatares nas redes sociais, em plataformas que estão ao alcance do polegar, nos nossos dispositivos móveis. Recebemos constantemente notificações que nos ‘bombardeiam’ com estas imagens de perfeição. A vida daquelas pessoas é uma ficção, não nos podemos comparar com algo que não existe. Em pessoas com problemas com a sua imagem corporal, algo comum na adolescência e no início da idade adulta, a exposição a estas imagens irreais pode levar ao desenvolvimento de insatisfação corporal e com ela a baixa autoestima, distúrbios alimentares e corporais, mal-estar psicológico, depressão e mesmo suicídio. A elevada prevalência da insatisfação corporal levou mesmo alguns autores a classificarem este problema como uma questão de saúde pública a necessitar de intervenção.
As redes sociais apresentam perigos diferentes face a outros meios tradicionais de comunicação?
Sim. Se compararmos as redes sociais com os meios de comunicação social tradicionais, as primeiras têm características que potenciam a sua envolvência, pois são mais interativas, o conteúdo produzido é gerado pelos pares e os conteúdos são facilmente partilhados. Na prática, os utilizadores possuem um papel tanto de difusão como de receção. Este tipo de comunicação propicia o desenvolvimento das “câmaras de eco”, um fenómeno em que os usuários das redes sociais interagem com outros usuários que partilham dos mesmos pontos de vista sobre um determinado assunto, evitando indivíduos com os quais discordam.
Refere “escolhas alimentares menos saudáveis”. Que escolhas são estas e que transtornos estão a trazer?
Ao contrário do defendido pela Organização Mundial da Saúde, entre outras estruturas internacionais, que apelam a um consumo maior de frutas e vegetais, ou seja, alimentos de origem não animal, o estudo observa que existe apreciável quantidade de conteúdos com alimentos de origem animal [carne, pescado e ovos], em detrimento de hortícolas ou de frutas. Surge muitas vezes a referência a novos alimentos que não são tradicionalmente usados em Portugal, como a tapioca, a curcuma, o matcha e o cardamomo. Isto, sem que muitas vezes haja evidência de vantagem nutricional no consumo destes alimentos, estes são associados a essa vantagem.
Os suplementos alimentares também apresentam um peso grande nestas publicações?
São citados em quase 8% dos conteúdos avaliados, embora sobre muitos deles não haja uma evidência científica concreta nas vantagens do seu consumo. Por exemplo, o colagénio foi o suplemento alimentar mais representado nas publicações com uma percentagem de 22,6%. Se formos verificar em termos de evidência e recomendação, não há grande sustento para o consumo de colagénio. Ou seja, promovemos algo que não nos traz mais-valia.
Em concreto, que alimentos são referidos nas publicações que analisou?
Em síntese, no grupo hortícolas os mais referidos são a cenoura, a cebola e o tomate. Nas frutas, preponderam o morango, a banana e o abacate. No grupo das leguminosas, o grão-de-bico, a ervilhas e as lentilhas. Por sua vez, no grupo dos cereais, encontramos os flocos de aveia, o pão, a massa e a batata, e nos lacticínios o iogurte natural, o queijo fresco e o queijo. Já no que respeita ao grupo carne, pescado e ovos, o trio de alimentos mais utilizado é o ovo, o frango e o camarão. Nas gorduras, verifica-se a utilização preponderante do azeite, óleo vegetal e manteiga e nas oleaginosas, a manteiga de amendoim, o caju e a amêndoa. Nos doces, os produtos mais referenciados são o cacau, bolo, chocolate e goma. Finalmente nas bebidas, destaca-se o café, a água, as tisanas e os chás.
As suas conclusões deixam-nos preocupados: “Os indivíduos avaliados não possuem idoneidade para comunicar nutrição”. Gostaria que pormenorizasse.
Estamos perante um problema de saúde pública e de desinformação. As pessoas muitas vezes chegam à consulta em posse de informação que ‘fulano e sicrano’ partilhou perante milhares de seguidores e toma isso como uma verdade. Vou verificar e constato que, do ponto de vista científico, essa informação não tem qualquer validade. Avaliei mais de 40 alegações científicas e observou-se que um terço destas não tinham qualquer tipo de evidência científica, era pouco robusta ou mesmo contrária à informação científica veiculada. Estamos a mudar comportamentos alimentares sem que haja fundamento para isso, e a promover alimentos de determinadas marcas que não precisam de ser introduzidos na nossa alimentação. O consumidor acaba por não se dar conta, é inocente. No meu trabalho sublinho o seguinte: “Desta forma, indivíduos que se autoproclamem ‘especialistas’ em determinado assunto, sem formação académica, sem credenciais respeitáveis ou adesão a um código de conduta profissional, mas com uma enorme capacidade de influência, têm uma voz ativa sobre temas que não dominam”. Julgo que sintetiza o atual panorama.
Associado a estes influenciadores nas redes surge o marketing de influencers. Este tem um peso grande no contexto português?
Sim, o marketing de influencers cresceu exponencialmente nos últimos anos. Os influencers em Portugal ainda não ganham, provavelmente, o mesmo que os congéneres norte-americanos. Isto, apesar de temos o influencer com maior número de seguidores no Instagram, o Cristiano Ronaldo. As marcas encontraram nas redes sociais uma forma de chegarem a mais pessoas, face à utilização de meios de comunicação tradicionais como a imprensa ou a televisão. Desta forma, os marketers apostam em campanhas nestas aplicações, nomeadamente o marketing de influencers, vistos como “marcas humanas”. Junta-se a isto a questão que chamo à minha tese, “o algoritmo do Instagram e desinformação”. Todos nós, quando usamos as redes sociais, recebemos publicações que refletem as nossas escolhas anteriores. Na prática, criamos para estas redes uma imagem de nós mesmos. Em consequência, a inteligência artificial das redes sociais vai afunilar as sugestões para os nossos interesses. E, claro, as marcas aproveitam esta prática. Pessoas que acompanham conteúdos de nutrição e exercício físico, ao fim de algum tempo apenas lhes é oferecido um décimo de publicações de outros dos seus campos de interesse. Vivemos numa bolha, não há contraditório. É assustador.
Nas consultas é difícil desmontar estes mitos?
Por vezes sim e foi uma das razões que me levou a empreender este estudo. Adolescentes e jovens adultos transmitem-me que gostariam de ter um determinado tipo de corpo. Tenho de explicar que se está a comparar com uma ficção. Peço para que a pessoa abra o Instagram e as publicações caem no âmbito daquilo que estamos a falar. Peço à pessoa para fazer uma limpeza no Instagram e para recomeçar, mas que o faça bem, com informação.
Não deveria haver mais escrutínio sobre quem influência nas redes? A Joana refere no seu estudo orientações mais objetivas no que diz respeito à publicidade nas redes sociais e promover a fiscalização dessas orientações por parte da entidade reguladora…
Sim, é uma terra sem lei. O que me choca é que os pacientes acham verdadeiramente que as pessoas vivem e alimentam-se daquela maneira. Devemos formar os miúdos para perceberem como funciona o algoritmo, para que desenvolvam espírito crítico quando as estão a usar. A própria escola deveria fazê-lo.
Também refere a revisão da legislação aos suplementos alimentares…
Sim. A tutela dos suplementos alimentares está sob a alçada da Direção-Geral de Alimentação e Veterinária (DGVA), mas deveriam estar sob a alçada do Infarmed. A DGVA considera os suplementos alimentares como géneros alimentícios, o que acaba por desvalorizar as potenciais consequências negativas que o seu consumo errado pode trazer para alguns indivíduos. Para além disto, a atual legislação não proíbe que determinadas substâncias com atividade farmacológica possam ser incorporadas como ingredientes de suplementos alimentares. Estes, são assim fontes concentradas de nutrientes, de venda livre, que estão acessíveis em vários locais como farmácias, supermercados e lojas da internet. Além do mais, como já referi em relação ao colagénio, alguns suplementos alimentares não dispõem de evidência científica suficiente para a recomendação do seu consumo.
Nas recomendações finais do seu estudo não separa os influencers de um plano para incentivar a literacia alimentar…
Sim, é necessário um esforço concentrado para promover orientações de alimentação saudável para o público em geral. Este esforço deve envolver organizações de saúde pública, com vista ao combate da desinformação facilmente acessível nas redes sociais. Logo, parece-me que seria interessante a criação de parcerias com os influencers, quer os leigos, quer os influencers que são nutricionistas, com vista a aumentar o alcance e o impacto das informações baseadas em evidência. Melhoraríamos a qualidade e a consistência das mensagens produzidas.
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