A entrada abrupta da diabetes tipo 1 na sua vida, aos 22 anos, não impediu Catarina Monteiro de se tornar na única velejadora insulinodependente no circuito profissional.
Hoje, com 25 anos, acredita que é a diabetes que se deve adaptar à sua vida e não o contrário. Para o provar, em 2012 quer fazer uma travessia atlântica em solitária, durante 30 dias. «Quero fazer coisas que me façam sentir viva», desabafa.
No espaço de dois meses, começou a perder muito peso, a sentir fome e sede desmedidas, até que sofreu uma paragem cardíaca e entrou em coma diabético. Corria o ano de 2004 e Catarina Monteiro, aos 22 anos de idade, descobria que era diabética tipo 1 (insulino-dependente).
A repentina perda de peso causou-lhe alguma estranheza, mas só após o primeiro desmaio é que, finalmente, decidiu fazer as análises que a médica lhe havia receitado umas semanas antes. Quando chegou à clínica, mal se aguentava em pé.
Perceberam logo que estava a entrar em cetocidose diabética e que, em breve, entrararia em coma cardíaco. Mandaram-na de imediato para o hospital. «Senti o corpo, literalmente, a desligar, e pensei: é agora que vai ser o meu fim», confessa.
Dois dias depois, começou, lentamente, a recuperar e, passados quatro a cinco dias, revelaram-lhe o diganóstico: tinha diabetes tipo 1, uma doença que exige uma gestão rigorosa, e que, a partir desse momento, ia ter uma nova vida.
«Na altura, encarei bem a notícia. Para quem já tinha passado por tudo aquilo... Dei graças a Deus por estar viva», recorda.
Mas o pior ainda estava para vir. O açúcar era tanto nas veias, que lhe entupiu os pequenos vasos dos olhos. «Comecei a perder a visão e fiquei sem ver durante seis meses, o que foi muito complexo de gerir. Nos primeiros tempos em casa, vi-me obrigada a fazer vida de doente», relembra.
Só passados seis meses é que Catarina tomou plena consciência daquilo que implicava a sua nova vida. «Voltei a ver, já tinha cumprido a minha parte, autocontrolo oito vezes ao dia, injecções de duas em duas horas, alimentação fraccionada… «E agora o que é que vai acontecer», perguntei ao médico.
Quando o médico me respondeu que aquela rotina era para sempre, foi aí que caí em mim: tenho de fazer isto todos os dias; não há um dia que possa falhar. Foi aí que comecei a entrar no processo de aceitar a doença, as coisas más e as coisas boas», admite.
«Comecei a tentar ver isto de uma perspectiva o mais positiva possível e a reagir ao que estava a acontecer», acrescenta ainda.
Aprender a viver com a diabetes
Daí em diante, Catarina dispôs-se a aprender a viver com a doença. «Foi um ano de aprendizagem, de perceber como é que isto funcionava. A diabetes é uma doença que não se resolve com uma consulta», refere.
«É no dia-a-dia que vamos aprendendo muito, sobretudo, que não se cura e temos de aprender a viver com ela. Comecei a procurar o testemunho de outras pessoas, como o do Fernando Costa [nadador olímpico diabético], para saber gerem a diabetes...», conta.
«Pensei: não posso continuar aqui em casa nesta vida de doente, tenho 23 anos anos e quero fazer coisas que me façam sentir viva, quero viver», afirma. A resignação não era, definitivamente o lema de Catarina. E não lhe passava pela cabeça limitar as suas opções de vida em função da diabetes.
Para provar a si mesma que estava à altura de qualquer desafio, decidiu fazer vela de competição, uma actividade que sempre praticou mas apenas por lazer. «Queria fazer coisas que me fizessem vibrar». Assim foi.
O processo de aprendizagem mal tinha começado quando soube que uma skipper internacional estava à procura de tripulação para fazer uma regata offshore (da Tunísia ao Líbano). Apesar da pouca experiência, candidatou-se ao lugar.
A atitude condescendente de alguns colegas que a achavam incapacitada para a vela de alta competição foi um estímulo adicional para seguir em frente.
«Para quem, como eu, tem uma doença que tem tantas limitações, com tantos cuidados diários (todos os dias é um novo dia, aquilo que fiz ontem já não serve para hoje, se deixar de dar a minha injecção tenho não sei quantas horas até entrar em coma e depois até morrer), dizerem-me que não posso. Nem pensar», admite.
O seu empenho valeu-lhe o lugar e, com apenas um ano de preparação, participou na sua primeira regata. Tornava-se, assim, na primeira velejadora insulinodependente no circuito profissional.
Um desafio chamado vela
A perspectiva de passar vários dias consecutivos em mar aberto num espaço exíguo, sem casa de banho, com água racionada, a dormir por turnos de apenas três horas não a fez esmorecer. Pelo contrário, inspirava-lhe uma sensação de «completa liberdade».
«Eu não me queria sentir doente. Sentir que posso sobreviver sozinha no mar, a mais de 100 milhas da costa, e em competição, ter de pensar em mim não só como diabética, mas como elemento de uma equipa de três ou quatro pessoas, dormir por turnos para estar ao leme, enfrentar ondas, chuva, enjoos, sem nunca esquecer de dar as picadinhas, era um desafio que eu queria vencer, apesar do medo que também senti», confessa.
E nem mesmo um enjoo de 56 horas com febre e alucinações, e uma tempestade com alerta vermelho, que a fez naufragar e ser salva por um barco do Green Peace, abalou a sua determinação.
«Aquela primeira viagem foi como que um soltar dos medos que tinha de mim mesma. Depois de passar por situações tão extremas e ter sobrevivido sem me ter acontecido nada, senti-me mais forte», afiança.
Diabetes sem limites
Praticar um desporto tão exigente, fisica, emocional e mentalmente faz com que Catarina não se sinta limitada pela diabetes. Para o provar, desdobra uma folha que traz sempre consigo, onde tem anotados os seus projectos futuros.
«Quando estou desmotivada, olho para ela para me lembrar onde quero chegar», refere. Em 2008, participar numa prova transatlântica de 26 a 36 dias e, em 2012, o seu objectivo máximo, fazer uma travessia atlântica em solitária, durante 30 dias.
Para isso, conta com a ajuda de uma equipa multidisciplar ne médicos que a ajudam, em terra, a fazer uma preparação muito específica. «É isso que me permite embarcar em aventuras desta dimensão».
Os conselhos de Catarina Monteiro
O primeiro obstáculo a vencer é o póprio doente. «Não podemos fazer disto um bicho de sete cabeças, nem pensar que estamos condicionados por imensas coisas. É importante adaptar a doença à sua vida e não a vida à doença. E não deixar de viver!»
Procurar informação. «A diabetes não se trata com algumas consultas, exige experiência e treino para saber como o nosso corpo vai reagir, e poder adaptar o programa que o médico nos dá».
Conhecer outros doentes. «Associar-se a associações e ouvir outros exemplos é importante para perceber que esta doença não é incapacitante.»
Seguir em frente. «Há dias em que me apetece fazer asneiras, ou que sinto os dedos massacrados de tantas picadelas, mas temos de encarar a vida e seguir em frente.»
A saber
A diabetes é uma doença crónica caracterizada pelo aumento dos níveis de açúcar (glicose) no sangue. Esse aumento resulta da deficiente produção e/ou acção da insulina, a hormona (produzida pelo pâncreas) responsável por distribuir a glicose (proveniente dos alimentos) pelas células, onde é transformada em energia (a principal fonte de energia do organismo).
Na ausência de insulina, a glicose não chega às células e fica acumulada no sangue, dando lugar à hiperglicemia (excesso de glicose no sangue).
Na diabetes tipo 1, também conhecida como diabetes insulinodependente, o organismo não consegue, de todo, produzir insulina, o que obriga os doentes a utilizarem, durante toda a vida, uma fonte externa (terapêutica) de insulina, de forma a manter normalizados os níveis de açúcar no sangue.
Texto: Fernanda Soares
Foto: Estúdios António J. Homem Cardoso
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