Foi no início de 2020 que a realidade tal como a conhecíamos mudou, como poucas vezes na história da humanidade, a uma escala mundial. De súbito, a maioria dos portugueses viu-se obrigada viver e a relacionar-se com os outros dentro de quatro paredes. ‘COVID-19’ passou a existir enquanto conceito dominante do nosso quotidiano e da nossa experiência interna. Desde então que temos acrobaticamente gerido as nossas expectativas e compromissos pessoais e profissionais conforme, semana a semana, nos é recomendado ou exigido. A entrada no novo ano, que para muitos parecia representar o abrir de olhos tímido depois um pesadelo coletivo, tem sido, afinal, caracterizada por novos recordes de infeções e inúmeras e diferentes perdas.

Ao longo de meses a fio temos vindo a tolerar níveis de incerteza sem precedentes. O futuro é imprevisível, não só em relação à resolução da pandemia, mas no que concerne às consequências dos últimos tempos para a realidade socioeconómica.

O medo é natural e adaptativo nestas circunstâncias, mas vivê-lo com demasiada intensidade pode implicar tensão, ansiedade e preocupações difíceis de suportar. É claro que todos somos diferentes no que diz respeito a quanta incerteza conseguimos tolerar na vida. Há pessoas que fazem investimentos financeiros arriscados com relativa tranquilidade, enquanto outras têm dificuldade em frequentar um evento sem saber ao certo quem estará presente. Independentemente de como oscilamos neste espetro, o contexto atual desafia os limites de todos.

A preocupação surge aqui como forma de tornar controlável o incontrolável: ao anteciparmos cognitivamente as coisas que podem correr mal esperamos encontrar uma solução ou proteger-nos melhor das consequências negativas de um determinado acontecimento. Infelizmente, a realidade continua à nossa espera, quer levemos o nosso cérebro à exaustão, quer não. A constante preocupação não nos pode conceder o controlo sobre um mundo imprevisível. Como podemos, então, gerir toda esta incerteza?

Aceitar a imprevisibilidade da vida

O mundo é um lugar incerto. Rejeitar a realidade é uma proteção momentânea que nos dá a ilusão de que podemos mudar as coisas sobre as quais não temos controlo. O problema? Quando compreendemos, enfim, que não temos poder sobre certas partes da realidade, o sofrimento é ainda maior e a atitude é de resignação. Em contraste, a aceitação dos aspetos difíceis da realidade permite que ocorra mudança do ponto de vista psicológico e que nos desenvolvamos de forma a resolver eficazmente problemas semelhantes no futuro.

Aceitar a incerteza significa tolerar as emoções desconfortáveis que ela pode gerar, como o medo, principalmente, mas também a zanga e a tristeza. As emoções são essenciais para o processo de integração de uma experiência, pelo que sobreviver emocionalmente a uma pandemia passa por abraçar o que sentimos ao invés de o negar ou evitar. No caso do medo, a regulação emocional perante um futuro imprevisível exige uma focagem no presente. Eis como podemos facilitar esse processo:

  • Identificar a necessidade momentânea de controlo e de segurança;
  • Reconhecer marcadores físicos (aceleração do ritmo cardíaco, respiração irregular, suor, tensão muscular, etc...);
  • Substituir pensamentos do tipo ‘E se...?’ por outros que sejam ancorados na realidade, como ‘não tenho forma de controlar o futuro, mas estou a fazer o que está dentro do meu poder para...’
  • Tolerar a emoção até ela se dissipar, respirando de forma suave, lenta e deliberada e dirigir novamente a atenção para a respiração sempre que notarmos o reaparecimento de pensamentos catastróficos.

Controlar o que é controlável

Procurar ter garantias de segurança sobre aspetos da nossa vida aos quais a incerteza é inerente é uma tarefa ingrata, assente em assunções irracionais, que coloca em risco a nossa saúde psicológica. Pelo contrário, agir sobre variáveis que podemos efetivamente influenciar cria espaço para satisfazer as necessidades de previsibilidade e controlo.

- Não é possível saber se serei infetado pelo novo coronavírus. Mas é possível ter comportamentos que reduzem as probabilidades de isso acontecer: usar máscara a maior parte do tempo, lavar as mãos com frequência, manter uma distância considerável nas minhas interações.

- Não sei como ajudar o meu familiar doente com COVID-19. Mas talvez saiba estar disponível para dar suporte emocional ou outro tipo de contribuição para o bem-estar dessa pessoa – por exemplo, ajudando com comida ou medicamentos.

- Não consigo ter o meu emprego de volta. Mas consigo investir o meu tempo e energia em melhorar o meu currículo, procurar anúncios, ativar os meus recursos profissionais ou desenhar um plano.

- Não posso sair de casa e fazer as coisas que me davam prazer normalmente. Mas posso decidir como preencho o meu dia em confinamento: que livro quero ler, que aprendizagem quero realizar e de que maneira posso ter sensações idênticas com atividades diferentes.

Outras formas de agir perante a incerteza no momento atual

1. Dosear e filtrar a informação. Definir um limite de tempo diário razoável em que contactamos com estímulos potencialmente ansiogénicos em relação ao futuro, tais como notícias, histórias ou posts dramáticos sobre a pandemia, dando prioridade a jornais e websites fidedignos e com verificação de factos.

2. Fomentar relações protetoras. A realidade imprevisível continuará a sê-lo, mesmo que não estejamos sempre a ser lembrados disso. Algumas pessoas nos nossos círculos poderão ser mais promotoras de ansiedade e medo, desenvolvendo interações em torno das suas preocupações e aumentando, mesmo que de forma não intencional, a ideia de que é forçoso ter controlo e saber o que vai acontecer. É importante definir limites interpessoais para que o medo da incerteza não domine totalmente os contextos socias. Em oposição, podemos procurar rodear-nos de pessoas cuja companhia nos traga segurança, tranquilidade e suporte emocional.

A procura pela eliminação da dúvida é infrutífera, resultando em ansiedade e comportamentos de segurança que a perpetuam. Recordemo-nos de que todos os dias já lidamos com várias situações onde existe uma certa quantidade de incerteza: por exemplo, quando atravessamos a passadeira, confiamos que os condutores cumprem as regras do trânsito. O risco existe no dia a dia, mas aceitamo-lo porque a probabilidade de algo negativo acontecer é muito reduzida. Contudo, como tendemos a fazer julgamentos com base na informação mais saliente e disponível no nosso cérebro – e como nos rodeamos de estímulos negativos acerca dos efeitos da pandemia – estimamos que a probabilidade de um evento ter um desfecho negativo é bem maior do que na verdade pode acontecer.

Perante um novo confinamento geral, o futuro torna-se mais volátil e o peso do desconhecido abate-se sobre nós uma vez mais. É urgente libertar recursos mentais para gerir as exigências do momento que atravessamos. O autocuidado é essencial para esta tarefa por mais que nos sintamos tentados a negligenciá-lo. Para muitos os desafios serão enormes, mas quiçá seja justamente aí, no cerne da adversidade, que nos possamos libertar, pouco a pouco, do sofrimento que advém de tentar controlar aquilo que é imprevisível, fazendo uma importantíssima distinção entre o que está ao nosso alcance e o que não está. Talvez aí, nesse sítio de dor e de oportunidade, sejam um pouco mais visíveis algumas das possibilidades que existem dentro da incerteza.

Inês Amaro - Psicóloga clínica