Uma alimentação saudável e amiga do ambiente não tem de ser sinónimo de tédio à mesa, antes um caminho para uma dieta estimulante e transformadora, promotora de bem-estar e de uma exploração dos recursos mais sustentável. Assim acreditam Cláudia Cordovil, docente e investigadora, Teresa de Herédia, nutricionista, e Diogo Noronha, chefe de cozinha. Ciência, nutrição e culinária uniram-se num projeto comum que confluiu no livro “Alimente-se sem deixar pegada” (edição Casa das Letras).

Na presente obra, o trio de autores revela-nos como as escolhas alimentares que fazemos no dia a dia têm uma relação direta na saúde do planeta. O tema é urgente, tal como o é o contributo para uma rede de produção alimentar mais sustentável, justa e acessível. Uma realidade complexa que nos pede informação clara. Para ajudar os consumidores nas suas escolhas, “Alimente-se sem deixar pegada” transcende o rol de receitas; faz uma reflexão sobre as nossas decisões alimentares e de como estas podem compactuar com um mundo onde os recursos são explorados com racionalidade.

Antes de iniciarmos a conversa a três vozes, porque também é importante conhecermos quem nos endereça a mensagem, façamos uma breve apresentação de cada um dos autores.

Cláudia Cordovil, professora no ISA-Instituto Superior de Agronomia da Universidade de Lisboa, é doutorada em Engenharia Agronómica pela Universidade de Lisboa e possui pós-graduação das universidades de Wageningen e de Gent. É avaliadora independente da Comissão Europeia, coordenadora da Task Force on Reactive Nitrogen da ONU e faz parte de grupos de trabalhos da FAO, da UE e da OCDE, no âmbito da agricultura e ambiente.

Teresa de Herédia é uma nutricionista com mais de 30 anos de experiência nas áreas de nutrição clínica, alimentação coletiva e restauração e inovação alimentar. Nos últimos anos, colabora com chefes de cozinha em projetos ligados à promoção da alimentação saudável. É licenciada pela Faculdade de Ciências da Saúde de São Camilo (São Paulo - Brasil), com reconhecimento pela Faculdade de Ciências da Nutrição e Alimentação da Universidade do Porto.

Diogo Noronha é um chefe de cozinha com currículo em restaurantes de Lisboa, Nova Iorque (onde fez o curso no Natural Gourmet Institute for Health and Culinary Arts) e Barcelona. Após uma viagem de sete anos pelo mundo, regressou a Portugal em 2009. Abriu os restaurantes Pedro e o Lobo, Casa de Pasto, o gastrobar Rio Maravilha, na Lx Factory, e o restaurante Pesca. Em 2020, juntou-se a Marta Fea e a Damian Irizarry para fundarem o coletivo Foodriders, onde é chefe-executivo e responsável pelas marcas Las Gringas e Ameaça Vegetal.

Cláudia, Teresa e Diogo juntaram ciência, nutrição e culinária para nos darem um mundo mais sustentável
Os três autores de "Alimente-se sem deixar pegada". créditos: Casa das Letras

No dia a dia, alimentamo-nos em “piloto automático”, esquecendo que o ato de comer caminha a par com escolhas com impacto positivo ou negativo no planeta. Junta-se à equação a necessidade de praticarmos uma alimentação equilibrada. Não será um jogo entre diferentes elementos demasiado complexo para o “comum mortal”?

Quantas vezes chegamos a casa e entramos na cozinha sem saber o que vamos cozinhar para a próxima refeição? Será que o que comemos nos faz bem à saúde? E será que estamos a causar algum impacto no ambiente?

O nosso guia de receitas “Alimente-se sem deixar pegada” é uma forma criativa e original, nada aborrecida (pelo contrário) que demonstra que a alimentação pode ser o inverso do “piloto automático”, porque é estimulante e transformadora.

Tudo o que fazemos na vida requer uma aprendizagem mais ou menos complexa. Aprendemos a andar, a falar, e isso não é nada fácil para uma criança mas, uma vez aprendido, fazemo-lo intuitivamente. Entendida a lógica, que está por detrás das escolhas começaremos, instintivamente, a fazê-las bem feitas.

Não pretendemos que o comum mortal consiga fazer os cálculos de pegada e de calorias, cada vez que compra um alimento ou que vai a um restaurante. Mas é simples aprender que há características nos alimentos que fazem bem ou mal à saúde e ao ambiente. O nosso livro é pioneiro neste sentido: se considerarmos todas as ferramentas disponibilizadas nas receitas (pegada de azoto, semáforo nutricional e porções alimentares), conseguimos perceber, de forma real, o impacto direto da alimentação na nossa saúde e no nosso planeta.

Para já, é essa a consciência que o “Alimente-se sem deixar pegada” quer despertar. Se este livro for um êxito, é claro que se seguirão mais obras com mais informação que é preciso conhecer.

É simples aprender que há características nos alimentos que fazem bem ou mal à saúde e ao ambiente.

Referem na vossa obra que a escolha dos alimentos é uma decisão individual. Na realidade é-o, mas não será, ainda antes, induzida por inúmeras forças cujo objetivo primeiro é motivado mais pelo negócio e menos pela sustentabilidade?

Se o mercado comanda o consumo, o consumo lidera o mercado. Temos assistido, ultimamente, a transformações grandes no que diz respeito à comida. O consumidor está a exigir determinados ingredientes, motivado pelas “modas alimentares” e pela informação que lhe chega às mãos. O que acontece é que a informação nem sempre é verdadeira.

Mas também é certo que, em muitos casos, os interesses económicos se sobrepõem ao correto, ao saudável e ao impacto negativo no ambiente.

Aliás, a agricultura está sempre a ser alvo de ataques movidos por interesses económicos, nem sempre com autenticidade e honestidade científica. É por isso que o nosso livro quer mostrar, com rigor científico, que cada ingrediente que escolhemos, para a nossa alimentação tem uma relação direta com a nossa pegada, com o nosso bem-estar e com o futuro do planeta e dos que o habitam.

alimente-se sem deixar pegada
créditos: Casa das Letras

Ainda em linha com a pergunta anterior, não obstante o guia alimentar “Roda dos Alimentos” ser uma ferramenta sobejamente conhecida no nosso país, logo apresentada às crianças de tenra idade, continuamos a afastar-nos (grosso modo) de uma alimentação saudável. Que fatores contribuem para essa realidade?

A Roda dos Alimentos é o guia que nos ajuda a escolher e a combinar os alimentos que devem fazer parte da nossa alimentação diária.

No entanto, a urbanização, a globalização e a desinformação que temos à distância de um clique, bem como as “modas alimentares” constantes parecem ter influência nestes hábitos, sobretudo nos mais jovens. E não podemos esquecer-nos do marketing alimentar. A grande oferta de produtos alimentares industrializados, a falta de tempo e a questão financeira levaram o consumidor a introduzir este tipo de produtos na sua alimentação diária, o que traz consequências diretas para a saúde e para o ambiente.

Encontra abaixo uma das receitas do livro "Alimente-se sem deixar pegada".

O vosso livro faz uma apresentação muito clara e concisa de alguns dos elementos associados a uma dieta pouco saudável, nomeadamente o sal, a gordura e os açúcares. Em jeito de provocação: não serão os atributos à mesa deste perigoso trio imbatíveis, face a todos os argumentos sensatos que os procuram destronar?

Este livro está repleto de ideias para fazermos escolhas mais conscientes sem perdermos o sabor e o gosto pela comida. Não há necessidade de retirar o sal, o açúcar e a gordura na totalidade, mas a sua redução parece-nos uma mudança muito sensata. Sabemos que o consumo exagerado destes nutrientes, característicos da alimentação dos dias de hoje, está relacionado com uma série de patologias crónicas não transmissíveis, mas infelizmente dão muito sabor e, muitas vezes, tornam-se viciantes. Como tal, além de sermos saudáveis e sustentáveis, gostamos de inovar e ser criativos. No momento de criar uma refeição, o pormenor é essencial. O ingrediente que até pode parecer “acessório” contribui de forma decisiva para dar cor, sabor, textura e qualidade nos menus apresentados e, assim, podermos reduzir o “trio imbatível” sem darmos conta da falta dele.

alimente-se sem deixar pegada
créditos: Casa das Letras

Podem dar-nos alguns exemplos de como escolhas alimentares aparentemente simples podem ser perniciosas para o planeta e, simultaneamente, sem ganhos para a nossa saúde?

Nunca antes houve tanto interesse da sociedade sobre nutrição e alimentação. Assistimos, nos dias de hoje, a um crescimento exponencial de estudos e artigos científicos e é certo que as pessoas nunca tiveram tanto conhecimento sobre o impacto das suas escolhas alimentares. O problema prende-se na compreensão, interpretação e claro, também na partilha dessa mesma informação. E esta problemática dá espaço a escolhas alimentares aparentemente simples, mas sem qualquer tipo de fundamento e benefício para a nossa saúde ou planeta.

Por exemplo, muitas pessoas substituem completamente o azeite por óleo de coco, acreditando que estão a fazer mudanças positivas na sua alimentação. Ora, o óleo de coco não é mais saudável, nem mais sustentável do que o azeite, a nossa gordura de eleição. Não há problema em incluir pontualmente o óleo de coco na alimentação, aliás este livro contém duas receitas confecionadas com óleo de coco. A questão passa por estarmos informados no momento das nossas escolhas e utilizarmos esta gordura conscientemente.

Outra questão relevante é a quantidade de gordura saturada proveniente das carnes que consumimos em excesso. Não precisamos de eliminar a carne da nossa alimentação, basta sermos conscientes nas porções e na frequência de consumo. Se todos seguirmos as recomendações sobre quantidade e qualidade das gorduras, a nossa saúde e o nosso planeta agradecem.

Há que destacar que um alimento pode ser saudável, mas não ser completo do ponto de vista nutricional.

Há uma expressão interessante no vosso livro: “o simples consumo de alimentos saudáveis por si só não garante uma alimentação saudável”. Porquê?

“Alimente-se sem deixar pegada” é um livro que pretende destacar a indispensabilidade de se contribuir para uma rede de produção alimentar mais sustentável, saudável, justa e acessível.

Há que destacar que um alimento pode ser saudável, mas não ser completo do ponto de vista nutricional. Se consumirmos apenas alimentos saudáveis, sem o cuidado de que o seu conjunto seja equilibrado do ponto de vista nutritivo, então isso criar-nos-á desequilíbrios.

E é igualmente urgente, para bem da nossa saúde, adotarmos uma alimentação mais equilibrada do ponto de vista nutricional. Esse é a mensagem principal do nosso livro.

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Apresentam no vosso livro receitas de baixa pegada de azoto. Gostaria que pormenorizassem este conceito.

Sempre de forma original, prática e saborosa, o livro está organizado por menus para duas semanas. Podendo ser essas receitas utilizadas todos os dias, se quisermos, ou adaptadas de acordo com a ocasião. No livro cada receita apresenta sempre os seus valores nutricionais e o nível de pegada.

Mas o que é a essa pegada? É uma marca que deixamos à nossa passagem. A pegada de azoto, é uma forma de quantificar este nutriente que é perdido para o ambiente, como consequência da escolha de um determinado alimento em vez de outro.

Nessa pegada está incluído todo o azoto perdido, ao longo da cadeia de produção, transporte e consumo desse mesmo alimento. Perde-se azoto na produção, no transporte através da emissão de gases, e depois há o desperdício alimentar. Parte desse desperdício pode ser recuperado, no processo de tratamento de lixo orgânico, e voltar a ser incorporado no processo produtivo. Isto também é contabilizado no cálculo da pegada de cada uma das receitas do livro.

Encontra abaixo uma das receitas do livro "Alimente-se sem deixar pegada".

Pato com cevada perolada
Pato com cevada perolada
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Que critérios nutricionais e ambientais utilizaram na planificação dos menus que apresentam no livro?

As receitas foram elaboradas em várias fases. Do ponto de vista nutricional, o primeiro critério foi avaliar todas as matérias-primas selecionadas pelo chefe de cozinha Diogo. Com base nessa avaliação, considerando os teores de sal, gordura e açúcar naturalmente presentes, fizemos algumas propostas de substituição ou redução das mesmas. Ao mesmo tempo, era também avaliada a pegada de azoto destas matérias-primas, até chegarmos a um consenso final entre as três áreas.

A partir deste momento foi feita a avaliação utilizando o semáforo nutricional, o que permitiu visualizar facilmente se os teores de gordura, gordura saturada, açúcar e sal da receita estava acima do recomendado. Com base nesta análise, fizeram-se os ajustes finais.

Para os menus, tentámos complementar as receitas de forma a criar um dia alimentar completo, variado e equilibrado do ponto de vista nutricional, de acordo com as guidelines nacionais.

Em Portugal produz-se alimento com regras de qualidade rigorosas. A agricultura nacional precisa de se manter viva e de boa saúde.

Questão pertinente nos dias que correm é a da produção local e sazonal. Todas as receitas do vosso livro obedecem a estes dois critérios? Ou seja, na prática, atualmente, conseguimos suprir as necessidades à mesa dos portugueses com recursos nacionais?

Procurámos dar importância aos produtos nacionais e sazonais. Os produtos nacionais devem ser incentivados.

Em Portugal produz-se alimento com regras de qualidade rigorosas. A agricultura nacional precisa de se manter viva e de boa saúde. E o consumo de alimentos locais é sempre mais sustentável do ponto de vista ambiental, por não ter associado o fator transporte.

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Os produtos sazonais dão um sentido de novidade e de variedade. Quem não se lembra de estar à espera da “época dos morangos”? É mais divertido ir mudando de ingredientes ao longo do ano.

Devido à exigência dos consumidores por alimentos novos, e às políticas agrícolas que têm direcionado a produção nas últimas décadas, não somos autossuficientes em todos os alimentos que consumimos. Mas não podemos esquecer que exportamos e importamos alimentos. Por isso, uma boa parte da produção nacional é exportada, a troco de melhores preços e de possibilidade de escoamento de maiores quantidades de produto.

Não podemos esquecer, também, que há hoje um maior conhecimento e consciência acerca do que é adequado produzir nas nossas condições edafo-climáticas. Esta consciência não existia há umas décadas e o agricultor produzia tudo em todos os solos. Hoje, não é assim.

No entanto, partindo do pressuposto absurdo de que Portugal ficava isolado no meio do oceano, sim, acreditamos que conseguiria alimentar a sua população, com qualidade e sabor.

Finalmente, podem dar-nos alguns exemplos de ingredientes utilizados nas receitas que não integrem a nossa cartilha tradicional e que sejam boas opções à mesa?

Ao longo de todas as receitas promovemos alguns grupos alimentares nutricionalmente interessantes e que sabemos que a população negligencia, com base nos dados da Roda dos Alimentos.  Se compararmos a distribuição das quantidades de produtos alimentares disponíveis diariamente para consumo apuradas pela Balança Alimentar Portuguesa de 2016, com o padrão alimentar recomendado pela Roda dos Alimentos, verificamos uma distorção entre a disponibilidade e as recomendações de consumo estabelecidas. Por exemplo no grupo das leguminosas verificamos uma recomendação de consumo de cerca 4% versus disponibilidade nacional de 0,6%.  O mesmo se verifica com o grupo da fruta (20% versus 12,7%) e com os hortícolas (23% versus 16,2%).

Além destes, podemos destacar alguns ingredientes específicos que, normalmente, são pouco utilizados na alimentação dos Portugueses: o funcho, um hortícola extremamente aromático e versátil; a cevada perolada e o millet, bons substitutos dos tradicionais arroz e massas; e as castanhas que, habitualmente, só consumimos no Magusto, mas que estão disponíveis todo o ano (congeladas). Todas as ervas aromáticas e especiarias utilizadas destacam-se por serem uma das chaves para conseguir refeições saborosas com baixo teor de sal, gordura e açúcar.