Da alquimia de Newton aos erros de Einstein, da lepidopterologia de Nabokov à cosmologia de Dante, de substâncias psicadélicas ao significado do ateísmo, do futuro da física ao poder da incerteza, sobre todos estes temas se detém o físico teórico italiano Carlo Rovelli no livro Há lugares no mundo onde a gentileza é mais importante do que as regras (edição Objectiva). Na obra, o autor oferece-nos um conjunto de breves ensaios que entrelaçam a ciência com a literatura, a filosofia e a política. O livro afigura-se-nos como uma espécie de diário de aventuras de um homem que sonha com um mundo onde a gentileza conta mais do que as regras.
Sobre o livro que oferece aos escaparates, escreve o autor no prefácio à obra: “Os artigos reunidos nestas páginas foram escritos durante a última década e exploram direções diferentes. Mais do que de ciência, falam de poetas, cientistas e filósofos que me marcaram, de algumas viagens, da minha geração, de ateísmo, buracos negros, telescópios, viagens psicadélicas, surpresas intelectuais e considerações várias; falam das minhas paixões e sonhos. São pequenas notas acerca das deambulações intelectuais de um físico que se interessa um pouco por tudo, à procura de novas ideias e de uma perspetiva mais ampla e coerente. Refletem confusamente o meu olhar sobre o mundo. Quem leu os meus livros encontrará alguns temas e ideias: que me perdoe a repetição. São textos que possuem a leveza intrínseca a este tipo de escrita, pensada para ser efémera. Encontrá-los aqui todos reunidos suscita-me algum embaraço, porque vejo os seus limites e talvez vislumbre mais aspetos de mim do que gostaria, como quando mostramos fotos antigas aos amigos”.
Carlo Rovelli é físico teórico e membro do Instituto Universitário de França e da Academia Internacional de Filosofia das Ciências. No presente, Rovelli é responsável pelo Departamento de Física Teórica da Universidade de Aix-Marseille. Entre os livros já publicados, refira-se Sete breves lições de Física. Rovelli é criador de uma das principais linhas de investigação sobre gravidade quântica.
A toxicidade da identidade nacional
A Grã-Bretanha é um país antigo. O meu país, a Itália, é jovem. Ambos têm orgulho no seu passado. Ambos apresentam características nacionais bem vincadas: é fácil identificar os italianos ou os ingleses no meio da multidão num aeroporto internacional.
Reconheço com facilidade o italiano que há em mim: não consigo falar sem agitar as mãos, tenho antigas pedras romanas nas caves da minha casa, em Verona, e os meus heróis na escola eram Leonardo da Vinci e Miguel Ângelo…
No entanto, esta identidade nacional é apenas uma camada fina, uma entre muitas outras, muito mais importantes. Dante marcou a minha educação, mas Shakespeare e Dostoiévski fizeram-no ainda mais. Nasci na beata Verona, e ir estudar na libertina Bolonha foi um choque cultural. Cresci no seio de uma classe social e partilho hábitos e preocupações com as pessoas desta classe em todo o planeta mais do que com os meus conterrâneos. Faço parte de uma geração: um inglês da minha idade é mais parecido comigo do que um veronês de idade diferente. A minha identidade vem da minha família, única — como o são todas as famílias —, do meu grupo de amigos de infância, da tribo cultural da minha juventude, da rede de amigos dispersos da minha vida adulta.
É, sobretudo, o resultado de uma constelação de valores, ideias, livros, sonhos políticos, preocupações culturais e objetivos comuns que foram partilhados, acarinhados, pelos quais lutámos juntos e que foram transmitidos por comunidades de maiores ou menores dimensões, ou até mesmo totalmente transversais às fronteiras nacionais. É isto que todos nós somos: uma combinação de camadas, interceções, numa rede de intercâmbios que tece a cultura multiforme e metamorfoseável de toda a humanidade.
Não estou a dizer nada de novo. Mas se a identidade de cada um de nós possui esta natureza complexa, como explicar que o nosso comportamento político coletivo tenha adquirido a estrutura de nação e o fundemos no sentimento de pertença a uma nação? Porquê a Itália? Porquê o Reino Unido?
Uma vez mais, a resposta é fácil: não é o poder que se constrói em redor de identidades nacionais; é o inverso; as identidades nacionais são criadas pelas estruturas de poder. Visto da perspetiva do meu jovem e ainda um tanto disfuncional país, a Itália, isto talvez se torne ainda mais patente do que do ponto de vista do antigo e nobre Reino de Sua Majestade, a rainha. Mas é a mesma coisa. Logo que se consolida, em geral sob fogo e fúria, a primeira preocupação de qualquer centro de poder — sejam os antigos reis ou a burguesia liberal do século xix — é promover um sentimento de identidade comum sólido. “Fizemos a Itália, agora façamos os Italianos”, é a famosa exclamação atribuída a Massimo d’Azeglio, pioneiro da unificação da Itália.
Surpreendo-me sempre com a diversidade de contornos que o ensino da história assume em diferentes países. Para um francês, a história mundial centra-se em torno da Revolução Francesa. Para um italiano, eventos de dimensão universal são o Renascimento (italiano) e o Império Romano. Para um norte-americano, o acontecimento fundamental que subjaz à humanidade, visto ter inaugurado o mundo moderno, a liberdade e a democracia, é a Guerra da Independência dos Estados Unidos contra… a Grã- -Bretanha. Para um indiano, as raízes da civilização encontram-se na época dos Vedas… cada um sorri das distorções dos outros e nenhum reflete nas próprias.
Lemos o mundo em função de grandes narrativas discordantes, que partilhamos com os nossos conterrâneos. São narrativas criadas conscientemente para gerar um sentimento de pertença a famílias fictícias, chamadas nações. Há menos de dois séculos, havia pessoas na Calábria que se denominavam “gregos” e, não faz muito tempo, os habitantes de Constantinopla definiam-se como “romanos”… e nem todos na Escócia ou no País de Gales apoiaram a Inglaterra no Campeonato do Mundo… As identidades nacionais mais não são do que um teatro político.
Não me entendam mal. Não pretendo sugerir que há algo de errado em tudo isto. Pelo contrário: unificar populações diferentes — Venezianos e Sicilianos, ou diferentes tribos anglo-saxónicas — com o objetivo de colaborarem para um bem comum é uma política sábia e visionária. Se lutarmos entre todos, é evidente que a nossa situação será muito pior do que se trabalharmos juntos. É a cooperação, e não o conflito, que beneficia todos.
A civilização humana é o resultado da colaboração. Quaisquer que sejam as diferenças entre Nápoles e Verona, as coisas são melhores para todos sem fronteiras a separá-las. O intercâmbio de ideias e bens, olhares e sorrisos, os fios que tecem a nossa civilização, enriquece-nos a todos em bens, inteligência e espírito.
Criar condições para que pessoas diferentes possam convergir num espaço político comum é vantajoso para todos. Neste sentido, reforçar este processo com alguma ideologia e teatro político à mistura, permitindo manter os conflitos instintivos afastados, montar a farsa de uma Sagrada Identidade Nacional, por mais falsa que seja, revela-se, apesar de tudo, uma estratégia útil. É ludibriar as pessoas, mas quem pode negar que a cooperação é melhor do que o conflito?
No entanto, é justamente aqui que a identidade nacional se torna tóxica. Criada para fomentar a solidariedade, pode acabar por se converter num obstáculo à cooperação em larga escala. Criada para diminuir os conflitos internos, pode conduzir a conflitos externos ainda mais melindrosos. As intenções dos pais fundadores do meu país, ao tentarem promover uma identidade nacional italiana, eram boas, mas bastaram algumas décadas para que desembocasse no fascismo, a glorificação extrema da identidade nacional. Foi o fascismo que inspirou o nazismo de Hitler.
A identificação emocional apaixonada dos Alemães com um único Volk acabou por devastar a Alemanha e o mundo. Quando o interesse nacional promove o conflito em vez da cooperação, quando em vez da procura de compromissos e regras comuns se prefere pôr a própria nação em primeiro lugar, a identidade nacional torna-se tóxica.
As políticas nacionalistas ou soberanistas estão a ganhar terreno em todo o mundo, aumentando as tensões, semeando conflitos, ameaçando todos e cada um de nós. O meu país acabou de recair nesta insensatez. Penso que a resposta é dizer alto e bom som que a identidade nacional é falsa. É vantajosa quando ajuda a superar interesses locais em prol do bem comum, mas é míope e contraproducente quando promove o interesse de um grupo artificial, “a nossa nação”, ao invés de um bem comum mais amplo.
Contudo, o localismo e o nacionalismo não são apenas erros de cálculo; alimentam-se do seu apelo emocional: a oferta de uma identidade. A política joga com o nosso desejo insaciável de pertença. “As raposas têm as suas tocas e as aves do céu têm os seus ninhos, mas o Filho do Homem não tem onde reclinar a cabeça…” Oferecer uma casa fictícia, a nação, é uma resposta falsa, mas custa pouco e compensa a nível político. Por isso, a resposta à perniciosa ideologia nacional não pode ser apenas um apelo ao bom senso, mas deve encontrar a aspiração moral e ideológica que merece: glorificar as identidades locais ou nacionais e usá-las para reduzir a cooperação em maior escala não é apenas um erro de cálculo, é também miserável, degradante e moralmente repreensível.
Não porque não tenhamos identidades nacionais: sem dúvida que as temos. Mas porque cada um de nós é uma encruzilhada de identidades múltiplas e estratificadas. Colocar a nação em primeiro lugar é trair todas as outras. Não porque somos todos iguais no mundo, mas porque somos diferentes dentro de cada nação. Não porque não precisamos de uma casa, mas porque temos casas melhores e mais nobres do que o teatro grotesco da nação: a nossa família, os nossos companheiros de viagem, as comunidades cujos valores partilhamos espalhadas pelo mundo; quem quer que sejamos, não estamos sozinhos, somos muitos.
E temos um lugar maravilhoso ao qual chamar “casa”: a Terra é uma tribo maravilhosa e diversificada de irmãos e irmãs com quem nos sentimos em casa e com quem nos identificamos — a humanidade.
The Guardian, 25 de julho de 2018. Publicado novamente no Corriere della Sera a 30 de julho de 2018.
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