Rita Sousa Gomes é pediatra geral, formada pela Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa. Ao longo da sua prática clínica desenvolveu especial interesse por áreas como a Alergologia e a Obesidade Infantil. Mas, para além da bata branca, há também uma mãe de duas crianças. Para Rita Sousa Gomes a experiência de maternidade moldou profundamente a forma como cuida dos outros. “Ser mãe trouxe-me uma perspetiva mais próxima das preocupações dos pais e mostrou-me como a empatia é tão essencial quanto o conhecimento técnico”.

Esse olhar mais humano está na origem do projeto Bê à Bá da Pediatria, plataforma digital que cofundou com a médica Sara Aguilar, e agora também no seu primeiro livro infantil: A Minha Pediatra Cuida de Mim, obra com a chancela da Manuscrito. Uma obra que nasce, nas palavras da pediatra na introdução ao livro, “da vontade de tornar mais simples aquilo que, tantas vezes, parece difícil de explicar. Das dúvidas que ouvi nas consultas, das preocupações que partilhei com tantas famílias e da certeza de que as histórias têm o poder de criar pontes entre pais e filhos”.

Com um registo literário acessível e afetivo, Rita escreve a pensar nas crianças, mas não esquece os pais. “Na consulta, há sempre perguntas. Algumas têm respostas fáceis, outras exigem tempo, paciência e, muitas vezes, a capacidade de traduzir o que é complexo em algo simples.” E é aqui que o poder da narrativa se revela. “Nem sempre é fácil explicar certas questões de saúde às crianças. Elas vivem o mundo de forma diferente. Questionam, imaginam, sentem... e percebi que, muitas vezes, as explicações médicas não são a melhor forma de lhes falar sobre o que se passa com o seu corpo ou com as suas emoções. As histórias, sim. Com elas tudo se torna mais próximo”.

excerto
excerto Excerto retirado do livro "A Minha Pediatra Cuida de Mim". créditos: Manuscrito

O título do livro é revelador dessa vontade de aproximação. “Reflete aquilo que acredito ser o essencial na Pediatria: a relação de confiança e cuidado entre a médica, a criança e a sua família”. O objetivo, explica, era sair do espaço clínico e chegar aos contextos quotidianos, com linguagem e emoções que pertencem ao mundo da infância. “A ideia do livro nasceu do desejo de ir além das paredes do consultório e chegar às casas, às rotinas e aos momentos do dia a dia das famílias. Quis criar um espaço onde a informação médica fosse passada de forma leve, através da empatia e da imaginação. As histórias têm essa capacidade única: falam à criança na sua linguagem, criam identificação, despertam emoções e permitem que se sintam compreendidas. Para os pais, funcionam quase como um abraço, porque validam dúvidas, aliviam culpas e mostram que educar com afeto também é educar com firmeza e consciência. Um folheto informa. Uma consulta orienta. Mas uma história aproxima e transforma”.

Mais do que a componente física

A visão de Rita Sousa Gomes sobre a Pediatria ultrapassa largamente os parâmetros físicos da saúde. “A saúde de uma criança não é apenas física. Envolve o seu bem-estar emocional, a relação com o corpo, a qualidade do sono, a alimentação, a forma como gere frustrações, e a rede de afetos que a rodeia.” A escuta ativa e o respeito pelas particularidades de cada família são, para si, ferramentas clínicas essenciais. “Há muitas mães e pais que chegam exaustos, cheios de dúvidas, às vezes com muita culpa. E muitas crianças que ainda não têm palavras para o que sentem, mas que precisam de ser compreendidas. Ser pediatra é acolher tudo isso, com ciência e com coração”.

Pediatra Rita Sousa Gomes
Pediatra Rita Sousa Gomes créditos: Manuscrito

No livro, a protagonista chama-se Teresa e é através das suas vivências que se abordam três temas particularmente sensíveis na prática clínica: a seletividade alimentar, a privação do sono e o uso excessivo de ecrãs. “São desafios que atravessam muitas famílias, e que geram, muitas vezes, tensão ou culpa. Através da Teresa, explorei o que pode estar por detrás destes temas desafiantes. E como a Dra. Rita, com empatia e escuta, ajuda a Teresa e os seus pais a compreender o que se passa, propondo soluções que fazem sentido para todos. São histórias simples, mas que são muito reais".

A médica acredita que as crianças sentem intensamente, mas nem sempre sabem dar nome ao que vivem. E é nesse ponto que a literatura infantil pode tornar-se ferramenta terapêutica. “Este livro oferece-lhes as palavras. Ajuda-as a perceber que o que sentem tem uma explicação, que o corpo ‘fala’ e que as emoções têm um lugar.” Para Rita, quando uma criança entende que o sono faz parte do crescimento ou que a resistência a certos alimentos pode estar relacionada com o medo do desconhecido, começa a olhar-se de forma mais consciente. “A história funciona como um espelho, e muitas vezes, esse espelho também ajuda os pais a compreenderem melhor os próprios filhos e até a reconhecerem partes de si que nunca tinham reparado”.

A escrita como desafio e exercício de proximidade

A escrita foi, em si mesma, um processo exigente e transformador. “Escrever para crianças foi um verdadeiro desafio, porque não se trata apenas de simplificar a linguagem, mas de criar proximidade, empatia e espaço para compreensão.” A história dedicada aos ecrãs foi, conta, particularmente exigente: “Levou-me a expandir o papel da pediatra para lá da consulta. Coloquei a Dra. Rita num contexto escolar, a falar não só com os pais da Teresa, mas com toda a comunidade educativa. Foi uma forma de mostrar que os médicos também podem ter um papel ativo fora do consultório, a educar para a saúde de forma acessível, afetiva e preventiva”.

Mas não são apenas as crianças que ganham ao ouvir ou ler estas histórias. “Espero que os pais se sintam menos sozinhos. Que percebam que os desafios que vivem são comuns, que não são sinal de falha, mas parte do processo de crescer (e de educar). Espero que encontrem estratégias, sim, mas também colo.” E conclui: “Levar este livro para casa é, de alguma forma, levar a pediatra consigo, não para dar lições, mas para lembrar que é possível cuidar com empatia, com presença e com sentido. E que, muitas vezes, basta um passo atrás, um olhar mais atento e uma escuta verdadeira para transformar a dinâmica familiar”.

Para Rita Sousa Gomes, um dos maiores desafios da parentalidade atual é, paradoxalmente, a abundância de informação. “Vivemos num tempo com acesso ilimitado à informação, mas com pouco filtro e excesso de opiniões. Isso pode gerar muita insegurança. Os pais sentem que precisam de ser perfeitos, querem fazer tudo ‘segundo as guidelines’ e têm muito medo de errar. Ao mesmo tempo, a exigência profissional e social muitas vezes rouba-lhes espaço para simplesmente estar com os filhos”.

a minha pediatra cuida de mim
a minha pediatra cuida de mim

Uma nova realidade no relacionamento com as famílias

Ainda assim, acredita que está a acontecer uma mudança positiva na forma como os médicos se relacionam com as famílias. “Quero acreditar que sim. Que estamos a viver uma fase de maior abertura e inovação na forma como comunicamos, sem que isso signifique que antes não havia empatia ou proximidade. Muito pelo contrário.” Refere que sempre conheceu médicos “profundamente humanos, atentos e próximos das famílias”. O que existe hoje, acrescenta, é “uma vontade crescente de tornar o conhecimento acessível fora do consultório também, através das redes sociais, de projetos como o ‘Bê à Bá da Pediatria’, de livros, de vídeos.” E conclui: “Não é uma rutura com o passado, é uma continuidade com novas ferramentas. E sinto que os pais reconhecem e valorizam isso cada vez mais”.

Apesar de ainda não poder revelar detalhes, deixa a promessa de que este livro pode ser apenas o início. “Há tantos aspetos do crescimento e da infância que merecem ser contados de forma acessível e com afeto. Sinto que este formato tem muito para oferecer, tanto às crianças como aos adultos que as acompanham. Tenho várias ideias em mente e a vontade de continuar a escrever permanece muito viva”.

O retorno dos leitores tem sido comovente. Rita recorda, em particular, uma mensagem que recebeu recentemente: “Uma mãe partilhou comigo que o filho, que sempre recusava ervilhas, depois de lerem o conto da Teresa pediu para as provar. Disse: ‘Quero experimentar, como a Teresa.’” E é nesses pequenos gestos, diz, que se revela o verdadeiro alcance da obra: “São momentos assim que mostram o poder das histórias, não para impor comportamentos, mas para inspirar mudanças verdadeiras a partir da identificação e da empatia”.