Partindo de uma investigação, entretecida numa narrativa com a ilustração de mapas, fotografias e outros documentos, o britânico Paul Cooper dá a conhecer em A Queda das Civilizações: Histórias de Grandeza e Declínio (edição Ideias de Ler) o dia a dia de impérios que viram o seu apogeu e queda.
Uma viagem pelos vários continentes, dos famosíssimos maias aos misteriosos rapanui, da Ilha da Páscoa, descobrimos na escrita do autor, também romancista, não apenas o esplendor e a relevância destas comunidades, mas também os perigos que as fizeram ruir, questionando o que terão sentido aqueles que testemunharam o fim do único mundo que conheciam.
Paul Cooper termina a sua odisseia imaginando que fim nos aguarda: os nossos automóveis obsoletos à beira da estrada, paisagens sem fim de prédios colossais. “Mas nem tudo precisa de um desfecho apocalíptico: é possível aprender com os erros do passado e ensinar às gerações presentes como reedificar as nossas sociedades”, defende o autor.
Da obra, publicamos o excerto abaixo.
A Ilha da Páscoa
O capitão Jacob Roggeveen estava no mar há 247 dias. Zarpara dos Países Baixos no ano anterior com três navios – Arend, Thienhoven, Afrikaansche Galey – e 223 tripulantes e chegara às Ilhas Falkland a 30 de dezembro. Partindo daí, dobraram o Cabo Horn com o mar agitado, acostaram no Chile durante algum tempo e depois navegaram para ocidente, entrando na seguinte grande zona desconhecida e aberta à exploração colonial: o Pacífico Sul. Ele e a sua tripulação estavam à procura de um continente hipotético conhecido como “Terra Australis”, que se cria estar situado algures nos mares a sul da Austrália. Mas, até então, as suas esperanças tinham sido vãs.
“Chegámos agora a cerca de 500 quilómetros para oeste de Copayapo, que se situa na costa do Chile”, escreveu no seu diário a 2 de abril de 1722, “e ainda não avistámos a desconhecida Terra do Sul (segundo relatos existentes sobre ela), para cuja descoberta a nossa Expedição e Viagem é realizada especialmente”. À sua frente havia apenas um mar aberto e chão. “Brisa irregular, com calmarias”, escreve, “também tempo carregado e aguaceiros. Vi uma tartaruga, sargaços e aves”. E, então, um dia, avistaram um pedaço de terra que quebrava a linha do horizonte. Foi no Domingo de Páscoa de 1722.
“Houve grande regozijo entre as pessoas”, escreveu Roggeveen, “e todos esperavam que essa terra baixa pudesse ser de facto um presságio da costa do desconhecido continente meridional”. À medida que se foram aproximando, os marinheiros holandeses viram fumo a erguer-se de aldeias ao longo da costa, “donde concluímos que havia pessoas que ali habitavam”. Em breve se tornou claro que não se tratava da ponta de um continente, mas apenas de uma pequena ilha, um ponto no meio do oceano. Mesmo assim, os holandeses ficaram curiosos. Era uma terra aparentemente infértil, estando a encosta coberta de erva selvagem e “a julgar pelo seu aspecto externo a única ideia que dava era a de uma vegetação extraordinariamente esparsa e pouco abundante”.
“As condições meteorológicas eram muito variáveis, com trovões, relâmpagos difusos e aguaceiros”, recorda Roggeveen. “O vento irregular de noroeste e calmarias esporádicas”. Quando o Arend e o Thienhoven se aproximaram da costa, os habitantes da ilha vieram até aos navios em canoas, saudando a tripulação holandesa com um espanto amistoso. Roggeveen desembarcou e o que viu maravilhou-o. Ao longo da praia, havia uma fila de enormes estátuas de pedra de costas viradas para o mar. Estavam esculpidas em pedra vulcânica negra, algumas atingiam os 10 metros de altura e eram sobrepujadas por coroas de arenito vermelho.
“Essas figuras de pedra fizeram-nos ficar maravilhados, porque não conseguíamos perceber como era possível que pessoas que não dispõem de madeira pesada ou grossa, e também de cordame resistente, com que construir equipamento, tivessem sido capazes de as erigir; mesmo assim, algumas dessas estátuas tinham uns bons 30 pés de altura e uma largura na proporção”.
Roggeveen e os seus homens não ficaram muito tempo. Ao fim de alguns dias, zarparam da ilha e atravessaram o Pacífico à procura de um continente que nunca se materializaria, mas o espetáculo notável daquelas estátuas de pedra nunca os abandonou, uma fonte de admiração e perplexidade. Roggeveen começou até a imaginar quão produtiva aquela ilha poderia vir a ser um dia, caso os europeus conseguissem colonizá-la permanentemente. “Este lugar”, refletiu, “no que respeita ao seu solo rico e bom clima, é de tal ordem que poderia ser transformado num Paraíso terreno, caso fosse devidamente trabalhado e cultivado”.
O que ignorava era que, no século subsequente, uma destruição inimaginável iria abater-se sobre esta ilha e todas as suas estátuas notáveis seriam derrubadas e abandonadas jazendo, varridas pelo vento e perdidas, naquelas colinas cobertas de erva.
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O oceano Pacífico é vasto. Cobre um terço da área total da superfície da Terra – maior do que a massa continental conjunta de todos os seus continentes. Espalhadas por esta enorme expansão de mar azul encontram-se mais de 30.000 ilhas de diversos tamanhos. A Ilha da Páscoa encontra-se no canto oriental de uma área chamada Triângulo Polinésio, uma expansão de água quase do tamanho da Ásia, salpicada de mais de mil pequenas ilhas vulcânicas com, em média, apenas 30-40 quilómetros quadrados cada. A Ilha da Páscoa em si tem uma forma vagamente triangular e é formada por três vulcões extintos em cada um dos seus vértices. É pequena – apenas cerca de 24 quilómetros de extremo a extremo – e encontra-se a mais de 2000 quilómetros da ilha habitada mais próxima.
“Com a sua superfície desolada coberta de erva, os seus rochedos selvagens e o oceano agitado lembra algumas das Ilhas de Scilly ou a costa da Cornualha”, escreveu a arqueóloga Katherine Routledge quando a visitou em 1913.
“De todos os lados temos lindas vistas do campo ondulado; por todo o lado há o vento do céu; em redor e por cima há mar e céu sem limites, espaço infinito e um grande silêncio. Aquele que ali vive está sempre à escuta de não se sabe bem o quê, sentindo inconscientemente que se encontra na antecâmara de algo ainda mais vasto que está apenas um pouco mais além do alcance da sua vista”.
As pessoas que haviam vivido na Ilha da Páscoa durante séculos chamavam-na pelo nome Te pito o te henua, que significa “fim da Terra” ou “umbigo do mundo”, consoante a tradução, e os polinésios dos nossos dias chamam-lhe Rapa Nui. Os primeiros polinésios que se fixaram na ilha vieram do ocidente, tendo deixado a massa do continente asiático algures antes de 3000 a. C. e avançado gradualmente, de ilha em ilha, pelo oceano. Na mitologia polinésia, essa antiga pátria é recordada como Havaiki, ou Hiva.
Esses marinheiros ousados contam-se entre os colonos oceânicos mais bem-sucedidos da História. Construíram canoas sofisticadas e robustas com dois cascos, mastros duplos e velas, tornando-as em simultâneo estáveis e rápidas e capazes de cobrir longas distâncias. O espírito dessa época está captado numa oração tradicional dos pescadores polinésios:
“Ó ser poderoso – que te deslocas livremente nos fragmentos quebrados do arco-íris, vai à minha frente neste dia! Que possas tornar-te um apoio elevando sempre o nosso barco bem acima das cristas lançadas pelo vento dos mares ondulantes, enquanto navegamos no nosso navio de dois cascos sobre as amplas vias do oceano, para que não nos afundemos sob as ondas apressadas”.
Esses primeiros colonos percorreram os oceanos sem quaisquer dispositivos físicos de navegação nem anotações escritas. Só podiam determinar a sua localização usando as estrelas – e memorizado essas posições dos astros e as de ilhas e rotas marítimas com histórias e canções não escritas. Também usavam pistas naturais que os ajudavam a navegar, incluindo as rotas de voo de aves marinhas como as gaivinas-de-dorso-preto de asa-branca e a andorinha do mar. Esta antiga canção dos marinheiros polinésios mostra a importância que essas aves tinham na sua cultura:
“Minha é a ave de migração voando ao longe sobre oceanos remotos, mostrando sempre a rota marítima da Garça-preta – a nuvem negra no céu noturno. É a estrada dos ventos seguida pelos Reis dos Mares para terras desconhecidas!”
No Pacífico, as tempestades podiam ser mortíferas para esses primeiros exploradores, mas, quando surgia um tufão grave, tinham um método de sobrevivência que parece impensável a um velejador moderno. Inundavam propositadamente as suas canoas, com os cascos de madeira a proporcionarem flutuabilidade suficiente para se manterem à tona, enquanto a embarcação parcialmente submersa podia sobreviver ao fustigo por todos os lados pelas rajadas fortíssimas do vento, sem se virar. Os marinheiros metiam-se dentro dos cascos alagados, mantendo as cabeças acima da água, e esperavam que a tempestade passasse. “Torrentes de água da chuva caem dos céus rachados, na tempestade atirada do céu abaixo”, diz uma canção tradicional. “Um dilúvio desce dos céus fendidos para as rajadas que sopram violentamente lá em baixo!”
Existem inclusive alguns indícios de que navegadores polinésios chegaram à costa da América do Sul, provavelmente na região da atual Colômbia. Esses exploradores podem ter regressado com a batata-doce, que se tornaria uma colheita favorita dos polinésios (embora também possa ter chegado naturalmente), e trouxeram com eles vestígios de ADN sul-americano que entrou no seu património genético cerca do ano 1200, três séculos antes de Colombo chegar à massa continental vindo do outro lado do mundo. Um estudo genómico recente concluiu: “Encontrámos indícios conclusivos de um contacto pré-histórico de indivíduos polinésios com índios americanos (cerca de 1200 d. C.) contemporâneos do assentamento da distante Oceânia”.
Há algum debate quanto ao modo exato como esses intrépidos aventureiros polinésios chegaram à Ilha da Páscoa. Durante muito tempo, presumiu-se que os colonos haviam chegado algures entre os séculos IV e V, mais ou menos na mesma época em que o Havai foi colonizado – mas, hoje em dia, a maior parte dos investigadores crê que Rapa Nui só foi colonizada cerca de 1200 d. C. Um antigo fragmento do folclore de Rapa Nui atribui a colonização da ilha a um rei polinésio chamado Hotu Matu’a, que é conduzido à ilha pela visão de um sonho de um profeta chamado Hau Maka. “A alma do sonho de Hau Maka prosseguiu e desembarcou”, afirma a história. A alma viaja pela ilha, dando nome a cada parte sequencialmente – quando acorda, Hau Maka vai contar ao seu rei o que viu: “Hau Maka foi falar com o rei sobre o seu sonho. Quando lá chegou, contou-lhe o seu sonho. Descreveu-o com todos os pormenores, incluindo todas as terras que a alma do seu sonho vira”.
Espantado com a história, o rei organiza uma grande expedição para encontrarem a ilha e fixarem-se aí. “Quando falares com os jovens”, afirma o rei, “diz-lhes que estas ordens são minhas, do rei Matua. Diz-lhes que têm apenas um ano para terminarem a construção da canoa e a lançarem”. Os colonos de Rapa Nui carregaram as suas canoas com tudo o que era necessário para o modo de vida tradicional polinésio. Trouxeram os seus alimentos principais: bananas, uma raiz vegetal chamada taro, batatas-doces e cana-de-açúcar, bem como galinhas e outro alimento fundamental – o rato-do-pacífico. Também trouxeram plantas jovens de amoreira-do-papel, cujas fibras usavam para criar tecidos.
A colonização das ilhas polinésias foi o capítulo final da viagem de pelo menos 100.000 anos e 30.000 quilómetros que nos levara de África até às Américas, passando pela Ásia – a última das grandes migrações. A Ilha da Páscoa foi a derradeira, e mais distante, paragem nesta viagem e, de alguma forma, a agitada viagem da Humanidade terminou nestas costas. Uma canção de marinheiros polinésia dá voz a um vigia de uma dessas embarcações, ao avistar terra ao longe: “Agora, os gritos distantes das aves terrestres são ouvidos enquanto elas descem para as sucessões de ondas no horizonte. Ah! Agora poisam num recife baixo… Agora vão descansar na terra que se ergue acima da orla do oceano!”
Hotu Matu’a e os seus colonos chegaram à Ilha da Páscoa em Anakena, uma praia de areia de coral branca no norte da ilha. A paisagem que viram ao desembarcar deve ter sido muito diferente da que vemos hoje. Em vez das encostas vazias e cobertas de ervas que vistas pela primeira vez por Roggeveen no século XVIII, a ilha estava então coberta por uma espessa floresta tropical de palmeiras. Se escavarmos o solo da ilha, ainda podemos ver as cavidades deixadas pelas raízes dessas árvores. Estudos dessas cavidades, bem como a análise de pólenes, mostram que, quando os seres humanos chegaram a Rapa Nui, a ilha albergava mais de vinte e uma espécies de árvores, sendo algumas delas grandes, incluindo pelo menos três que atingiam os 15 metros ou mais. Uma espécie, hoje extinta, conhecida como Paschalococos disperta, ou palmeira da Ilha da Páscoa, pode ter sido uma das maiores espécies de palmeira do mundo, sendo o seu tronco bulboso capaz de atingir mais de 25 metros de altura e um metro de espessura. Esses colonos eram agricultores e em breve começaram a desmatar o terreno, usando uma agricultura de corte e queimadas para fazerem as suas práticas.
A areia da praia de Anakena, o local do primeiro assentamento, é particularmente boa para a preservação de ossos e restos mortais humanos, e os esqueletos aqui examinados proporcionaram aos investigadores conhecimentos sobre a vida dos antigos ilhéus de Rapa Nui. Por exemplo, sabemos que, para além das suas colheitas, cerca de metade da alimentação provinha de animais marinhos, incluindo golfinhos, focas, peixes e tartarugas marinhas. Essas tartarugas eram apanhadas à mão por mergulhadores que nadariam até às profundezas muito escuras, durante a noite, e que a cultura polinésia venerava como heróis. Talhavam os anzois em osso, faziam cordas com as fibras de hibiscos e cozinhavam em fornos de terra conhecidos como umu. “Quando construíres o teu forno de terra”, aconselha uma canção tradicional polinésia, “certifica-te de que o monte de pedras brilha com o calor intenso do fogo que fizeste; transforma-te num trabalhador capaz e assíduo, ó meu filho!” Eram engenhosos e recorriam ao conhecimento herdado contido nas canções dos seus antepassados. Espalharam-se com rapidez por todo o pequeno território, até toda a Rapa Nui ficar totalmente povoada por 4000 pessoas e a sua cobertura florestal ser eliminada.
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Desde que a história da Ilha da Páscoa entrou no imaginário popular do mundo ocidental, houve uma narrativa em especial que dominou. Começou com exploradores europeus logo em 1786, foi propagada por antropólogos vitorianos e do século XX e foi popularizada, por fim, por autores como o cientista Jared Diamond, no seu livro Collapse, de 2005. Nesta narrativa, os habitantes da Ilha da Páscoa foram os arquitetos da sua própria extinção. A população cresceu até a ilha já não conseguir suportar o seu número. Cortaram as árvores para lenha, material de construção e, diz-se, para serem usadas como andaimes e rolos no trabalho monomaníaco de transportar a sua grande quantidade de estátuas enormes. A perda das árvores destruiu a fertilidade do solo da ilha e a produtividade caiu. Juntamente com o colapso da ecologia da ilha, a sociedade complexa e centralizada que esculpira as centenas de estátuas de pedra começou a desmoronar-se. A fome campeou, o que levou a um período de guerra civil violenta e mesmo de canibalismo. Pouco antes da chegada dos europeus em 1722, conta esta versão, já toda a sociedade de Rapa Nui se tinha desmoronado, e restavam apenas algumas centenas de sobreviventes. “Em apenas uns séculos”, escreve Diamond, “o povo da Ilha da Páscoa eliminou a sua floresta, levou as suas plantas e animais à extinção e viu a sua sociedade complexa mergulhar no caos”. Os arqueólogos Paul Bahn e John Flenley vão ainda mais longe, vendo a desflorestação da ilha como uma condenação de toda a raça humana: “A pessoa que derrubou a última árvore podia ver que era a última árvore. Mas ela (ou ele) derrubou-a mesmo assim. É isso que é tão preocupante. A cupidez da Humanidade é ilimitada. O seu egoísmo parece ser inato geneticamente”.
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