
Crimes violentos, exorcismos, cultos satânicos, bruxaria e outros fenómenos associados ao Mal são o ponto de partida do livro Uma História do Diabo, obra do jornalista norte-americano Randall Sullivan, publicada em Portugal com a chancela da Casa das Letras. O livro propõe-nos um percurso de vários séculos ao encontro de crenças, lendas e episódios históricos para traçar o perfil daquela que será a mais persistente e universal das figuras das trevas: o Diabo.
Randall Sullivan, natural de Los Angeles e residente no estado do Oregon, é um nome reconhecido no jornalismo de investigação norte-americano. Com uma carreira iniciada no New York Daily News, o autor já escreveu para publicações como The Washington Post, Rolling Stone, Esquire, The Guardian e Wired. Ao longo de décadas, a sua escrita valeu-lhe várias distinções e nomeações para prémios, incluindo três obras candidatas ao Pulitzer.
No presente título, Sullivan adota uma abordagem híbrida, entre o ensaio histórico e o jornalismo de investigação. Não se limita à tradição judaico-cristã: visita as origens pagãs do Mal, atravessa as transformações simbólicas do Diabo ao longo da Idade Média e da Inquisição, e termina na contemporaneidade, com casos que misturam crime e histeria coletiva, como o escândalo de abuso ritual satânico em McMartin, Texas, em 1988.
O livro parte de uma premissa: o Mal é uma constante histórica e cultural, ainda que a sua representação — o Diabo — tenha mudado consoante os tempos e os contextos. Para ilustrar esta tese, Sullivan relata, por exemplo, o exorcismo de Robbie Mannheim (o caso real que inspirou O Exorcista), entrevistas com padres e investigadores religiosos, e até uma viagem pessoal à selva do México, onde participa num ritual contemporâneo dedicado a El Diablo.
Em entrevista ao programa norte-americano Coast to Coast AM, o autor referiu: “O Diabo é, em muitos casos, o reflexo das nossas obsessões. Não se trata apenas de fé ou religião — trata-se de poder, medo e controlo social.” Através de dezenas de relatos e fontes, o livro procura mostrar como a crença no Mal é moldada tanto por fatores espirituais como por mecanismos culturais e políticos.
Apesar de ter sido ateu durante grande parte da sua vida adulta, Sullivan converteu-se ao catolicismo após cobrir um evento de peregrinação mariana em Medjugorje, na Bósnia, nos anos de 1990. Essa experiência marcaria profundamente a sua escrita posterior, nomeadamente em livros como The Miracle Detective (2004), onde já abordava fenómenos místicos e controversos ligados à fé.
Esta perspetiva pessoal, ainda que discreta, está também presente em Uma História do Diabo. Sem se assumir como um livro confessional, a obra sugere que há experiências que escapam ao entendimento racional e que a ideia de “Mal absoluto” continua a ser um enigma tanto para crentes como para céticos.
Do livro, publicamos o excerto abaixo:
Introdução
No verão de 1995, eu vivia num país em guerra. Dois anos antes da minha chegada, tinham sido cometidas as piores atrocidades na província mais ocidental da Bósnia e Herzegovina, onde estava a ficar. No entanto, foi no meio das crateras de explosões e dos buracos de balas em Mostar, uma cidade demolida que então se encontrava sob um cerco de terror psicológico de tiros aleatórios de morteiros e disparos esporádicos de sniper, que comecei a reconhecer “o problema do mal” como um obstáculo à fé religiosa.
As histórias de horror que ouvi em Mostar afiguravam-se um pântano moral. Mantive a cabeça erguida sobre o horror, flutuando à superfície numa bolha perfurada de profissionalismo, recusando-me tanto a acreditar como a não acreditar na história daquelas freiras católicas que alegavam ter sido capturadas por uma unidade de uns tais četniks e violadas em grupo até todas ficarem grávidas, tendo depois sido dadas a escolher entre o aborto, o suicídio ou dar à luz um bastardo sérvio. Para mim, bastava a breve experiência da tristeza aguda que pairava sobre toda a cidade desde as mortes muito públicas de uma jovem mãe muçulmana e dos seus dois filhos, que tinham explodido num ataque de míssil enquanto tentavam fugir ao longo do rio Neretva num barco de borracha. Era capaz de defletir tudo exceto as expressões dos órfãos nas esquinas. Com sete e oito anos de idade, fumavam cigarros e atazanavam os transeuntes com uma insolência empedernida no rosto que resistiria até a uma metralhadora. Olhando para os seus olhos cor de ágata, sabia que era demasiado tarde para todos nós.
Procurando um caminho através do amontoado gigante de detritos queimados que em tempos fora o centro da cidade de Mostar, um lugar onde, dois anos antes, católicos e muçulmanos, sobreviventes dos bombardeamentos sérvios, haviam lutado uns contra os outros com artilharia à queima-roupa, perguntei a mim mesmo, como tantos outros tinham feito antes de mim: “Como pode um Deus omnisciente, omnipotente e omnibenevolente permitir tamanha depravação?” Então e a justiça? Talvez Deus não fosse quem eu pensava que era. Talvez Deus não fosse, ponto.

Não me ajudava a dormir o facto de as pessoas mais impressionantes que conheci nesse verão insistirem que o Diabo, pelo menos, era real. A primeira pessoa a proferir essas palavras foi Mirjana Solda, uma religiosa visionária em Medjugorje, o “centro de paz” bósnio-croata situado a vinte quilómetros de Mostar. Tinha-se formado aí um arrebatado culto de devoção em torno das aparições da Virgem Maria, que já então constituíam os supostos fenómenos sobrenaturais mais controversos e cuidadosamente observados a surgir à face da Terra em pelo menos meio século. Enquanto Mirjana me instava a reconhecer o Diabo como um ser real que estava determinado a roubar a minha alma, os seus pálidos olhos azuis pareciam ensombrar-se e a sua expressão transformou-se numa combinação desconcertante de pena e admoestação. A minha sensação era a de que ela se sentia obrigada a dar-me um aviso ao qual já sabia que eu não iria dar ouvidos.
Rita Klaus foi mais bem-sucedida a suspender a minha descrença. Uma grande e bela mulher encanecida de Pittsburgh, Klaus era famosa por se ter curado espontaneamente de um caso avançado de esclerose múltipla, o mais célebre e meticulosamente documentado dos muitos milagres medicinais associados a Medjugorje. Klaus parecia ter surgido do nada, uma tarde, na sede da paróquia da vila. Sentou-se à minha frente, debruçou-se sobre a mesa, pôs a sua mão na minha e apresentou-se com as seguintes palavras: “Satanás existe.” Senti-me como se tivesse sido injetado com uma droga qualquer que causasse uma paralisia temporária. Klaus pareceu esperar que o efeito fosse total antes de continuar: “O mal dentro de si vem da tentação. Tem de tomar uma decisão, para o bem ou para o mal. Assim o mal está dentro de nós, como crê, mas também anda por aí e acredite que é bastante real e insidioso.” Klaus contou-me então a história de um ataque diabólico perpetrado contra a sua família, o qual tivera início quando uma das suas filhas começara a experimentar com um tabuleiro ouija. A parte que mais me perturbou na altura e que viria a assombrar-me mais tarde envolvia uma série de ataques a Klaus e à sua família levados a cabo por algo que assumira a forma de um grande cão preto com olhos vermelhos. “Eu não o quero assustar, mas acho que precisa de ouvir a minha história”, disse-me Klaus a certa altura. A ênfase que ela colocara na palavra “precisa” deixou-me desconcertado.
A pessoa que admirava acima de toda a gente que conheci em Medjugorje era um padre franciscano chamado Slavko Barbarić, conselheiro espiritual de Mirjana e de outros visionários. Pouco tempo depois do meu encontro com Rita Klaus, o padre Slavko tentou perfurar o meu ceticismo com um relato fenomenológico. Slavko era, entre outras coisas, um intelectual com vários doutoramentos, incluindo um em psicologia. Levou-me a baixar a guarda ao admitir desde logo a sua própria relutância em acreditar no mal sobrenatural, tendo-me em seguida descrito a série de eventos que o tinham feito mudar de ideias. Uma experiência que fora profundamente impressionante envolvia a sua participação no exorcismo de uma mulher que era capaz de distinguir hóstias consagradas de hóstias não consagradas. Ele e outros padres que estavam a participar no exorcismo tinham saído do quarto em múltiplas ocasiões, recordou Slavko, apenas para regressar uns minutos mais tarde, quer com uma hóstia que fora consagrada quer com uma que ainda não havia sido benzida. A mulher, que se encontrava deitada na cama, não reagira uma única vez quando eles entravam no quarto com uma hóstia não consagrada, disse-me Slavko, mas entrava em paroxismos, contorcendo-se e praguejando, sempre que uma hóstia consagrada se aproximava dela. “O que haveria nela que pudesse saber a diferença?” perguntou Slavko. Em resposta, limitei-me a abanar a cabeça.

Eu próprio viria a testemunhar um exorcismo escassos dias depois. Desde então, nos anos que se seguiram, tentei por várias vezes desconstruir essa experiência, na esperança, principalmente, de a conseguir tirar da cabeça. Aqueles a quem falei disto referem sempre o “estado alterado” em que me encontrava na altura. Não o nego. Aquela noite e os dias que a precederam foram quase insuportáveis pela sua intensidade. A missa do Festival Internacional da Juventude, no âmbito da qual o exorcismo ocorreu, foi a mais fervorosa e fascinante cerimónia religiosa a que alguma vez assisti. Os cerca de mil jovens adultos, que se haviam deslocado até Medjugorje vindos de todo o mundo, tinham enfrentado os avisos das Nações Unidas e da União Europeia de que a situação se afigurava particularmente instável no momento presente e de que viajar para a ex-Jugoslávia era “altamente desencorajado”. A guerra aproximava-se do seu apogeu e os croatas mobilizavam-se para uma última investida contra os sérvios. A missa dessa noite achou-se imbuída, desde o primeiro momento, da sensação de que os exércitos da luz se arregimentavam contra as forças das trevas. O padre Slavko estava como eu nunca o tinha visto, feroz no seu ardor, balouçando o ostensório dourado e a hóstia benzida no seu interior como uma arma sagrada enquanto atravessava a multidão.
De cada vez que Slavko apontava o ostensório numa nova direção, repetindo as palavras “Corpo de Cristo”, eu ouvia, vinda da assistência, uma erupção de ruídos arrepiantes, guinchos de agonia e arquejos de terror, uivos de animais e imprecações roucas e troantes. Havia quem ladrasse de forma ríspida: “Vai-te foder!” O coro no palco atrás de Slavko limitava-se a cantar mais alto, as suas faces luzindo com a convicção de que a vitória estava iminente. À medida que Slavko se aproximava, a sua expressão assustava-me; o olhar do padre macilento, sempre cheio de ternura, havia sido substituído por um esgar acutilante. Slavko apontou o ostensório diretamente para mim e, numa voz sonante, gritou: “Jesus!” Foi o mais perto que alguma vez estive de desmaiar e cair para o lado. Os bramidos de raiva e os gritos de dor pareciam crescer à minha volta. Uma jovem mulher, que se encontrava mais ou menos a uns seis metros de mim, começou a produzir um barulho que eu nunca tinha ouvido, uma tosse tão seca e cavernosa que parecia que estava a tentar cuspir um pulmão. Essa tosse continuou e continuou, como um eco que se ia amplificando ao invés de esmorecer. Depois, a mulher dobrou-se e começou a tremer de uma forma descontrolada com uma espuma branca a escorrer-lhe copiosamente da boca. Caiu ao chão, pontapeando e contorcendo-se, e começou a gritar obscenidades.
Ouvi “Vai-te foder, Jesus” num inglês muito claro, assim como outras imprecações – ou o que eu supus serem imprecações – numa variedade de línguas que não reconheci. A voz da rapariga tornou-se impossivelmente grave e gutural, enquanto a baba branca continuava a escorrer-lhe dos lábios. Em volta, juntaram-se várias pessoas a recitar a oração de exorcismo do papa Leão XIII. A certa altura, a rapariga no chão pareceu aquietar-se, emudecendo, mas logo tornou a gritar mais alto do que antes, horrivelmente desesperada. No instante que me parecia ser o clímax, arqueou as costas numa posição que nem uma ginasta de topo seria capaz de manter, com todo o seu peso em cima dos calcanhares e da cabeça, e soltou uma expiração áspera e cava que lhe terá esvaziado os pulmões por inteiro.
Aquilo que me chocou, porém, foi o cheiro, um fedor medonho que se assemelhava ao cheiro a carne podre. Então, fiquei completamente convencido de que alguma coisa estava a sair dela, de que aquilo que eu tinha acabado de testemunhar não era emocional, nem psicológico, nem imaginário, mas real, o que quer que isso significasse.

Lembro-me muito pouco do que aconteceu depois, retenho apenas algumas imagens desfocadas da rapariga a ser ajudada a levantar-se e a ser retirada dali, de Slavko a terminar a missa, dos rostos brilhantes dos membros do coro enquanto cantavam. Não faço ideia de como voltei à Pansion Maja, de como entrei no meu quarto, nem de como, atravessando-o, penetrei no varandim onde acordei com a aurora, esparramado no chão de cimento, tremendo de frio e feliz de uma maneira que até então desconhecia por completo.
Dois dias depois, encontrava-me em Roma a caminho de casa. Estávamos em meados de agosto e, para fazer frente ao calor sufocante, fui à procura das névoas refrescantes da Fonte dos Quatro Rios, situada na Piazza Navona. Estava sentado num banco de jardim quando reparei num homem bem-vestido a andar num mar de turistas, vendedores de t-shirts e artistas de rua, os quais pareciam afastar-se para lhe dar passagem. O homem vestia um belo blazer azul e umas calças de linho cor de creme, uma resplandecente gravata amarela e uns mocassins bicudos que haviam sido polidos até brilharem. “Que cavalheiro”, pensei e, em seguida, ao ver o rosto do homem, cortou-se-me a respiração. As suas feições aquilinas confluíam na expressão mais estranha que alguma vez tinha visto, uma espécie de pantomina malévola que não chegava a mascarar completamente a raiva subjacente. Embora estivesse sozinho, à medida que se aproximava de mim, o homem começou a falar em voz alta numa língua que não era italiana. Com o coração a martelar-me o peito, olhei para os turistas em redor, estupefacto com a sua falta de reação. Aparentemente, ninguém tinha reparado na absoluta bizarria que andava ali pelo meio. Era como se o homem de cabelos grisalhos e eu nos achássemos, de alguma forma, isolados da cena que nos rodeava. De repente, o homem soltou uma gargalhada e virou ligeiramente a cabeça para me fitar com um olho. Nesse momento, tive a certeza absoluta de que ele não era humano. Sabia-o. Uma calma que não era deste mundo abateu-se sobre mim quase imediatamente. Não sei porquê, mas decidi agarrar na medalha escapular que resolvera usar nesse verão, olhei-o de volta e murmurei: “Não me podes tocar.” Ele devolveu-me um obsceno olhar de soslaio. Percebi então exatamente o que me disse: “Apanhar-te-ei mais tarde.”
Uma vez regressado a casa, não falei a ninguém da... criatura que encontrara na Piazza Navona. À medida que o tempo foi passando, a indelebilidade daquele verão começou a desvanecer. No espaço de alguns anos, a única coisa que percebia melhor do que antes era o quanto a memória se tratava de convicção. E por essa altura as vantagens práticas pareciam estar todas do lado da dúvida. Afirmar que encontrara uma entidade diabólica na Piazza Navona far-me-ia soar ou doido ou tolo – inclusive aos meus próprios ouvidos. Não me ajudaria em nada.
A emissão televisiva de um “exorcismo em direto” num noticiário ajudou imenso a minha vontade de esquecer. A encenação forjada e a teatralidade exuberante desse evento televisivo serviam apenas para realçar a abjeta necessidade de público que guiava não só os produtores do programa, mas também o exorcista pomposo e o seu paciente pouco brilhante. Não havia sequer autoconsciência suficiente na coisa para a erguer ao nível da farsa. Então, pensei: “E se a principal diferença entre aquilo que testemunhei na Bósnia e isto que estou a ver agora residir no meu estado de espírito?” Considerar isto sequer como uma possibilidade minava a minha recordação daquela noite em Medjugorje.
E dado que os meus momentos numinosos do verão de 1995 nunca mais se tinham repetido, tornou-se cada vez mais fácil tentar convencer-me de que as simpatias e as tensões extraordinárias que experienciara na Bósnia haviam induzido perceções bizarras de coisas que provavelmente não passavam de sombras meio imaginadas de uma verdade que estava para lá do meu entendimento. Ou uma merda parecida. Embora não acreditasse realmente nesta nova versão da minha história, também não acreditava na que trouxera comigo para casa. Em breve, afigurou-se-me tanto possível como preferível envolver as minhas memórias numa nuvem de ambiguidade.

Quem me tirou dessa nuvem foi o meu filho de quatro anos. Certa manhã, o Gabriel enfiou-se na cama ao meu lado e sussurrou-me ao ouvido que algo terrível lhe acontecera durante a noite. Um grande cão preto com olhos vermelhos, disse-me ele, entrara no seu quarto e mordera-lhe a fralda, o pedaço de flanela azul com faixas de seda com o qual dormia desde que nascera. O meu filho tremia enquanto proferia estas palavras. Quando o abracei e tentei explicar-lhe que às vezes os nossos sonhos parecem tão reais que ficamos com a impressão de que realmente aconteceram, ele ficou em silêncio durante uns instantes e em seguida respondeu-me num tom queixoso que não era um sonho, que ele sabia que não era um sonho, que era real. Quando tentei explicar-lhe novamente como as coisas que uma criança imagina ver durante a noite a podem afetar, ficou chateado e quis saber por que razão estava eu a tentar fazê-lo pensar que ele não sabia o que era real e o que não era. “O cão era real, mesmo que não fosse um cão de verdade”, disse-me ele. Na altura, passei à frente, embora o assunto continuasse a vir ao de cima de vez em quando, sempre por via do meu filho. Parecia que tinha necessidade de falar sobre aquilo. Tentei em várias outras ocasiões sugerir que aquilo que ele experienciara tinha sido um sonho muito vívido e poderoso, mas isto deixava-o invariavelmente enfurecido. Quando tinha cinco anos, foi a um psicólogo que lhe falou dos terrores noturnos que as crianças pequenas muitas vezes experienciam e de como esses terrores têm lugar numa zona entre a vigília e o sono. O Gabriel pareceu encontrar algum conforto nesta ideia, mas daí a um ano tornou a falar no cão preto que lhe mordera a fralda quando ele tinha quatro anos e voltou a insistir que aquilo que acontecera tinha sido real, não um sonho, nem sequer um terror noturno. Desta vez estava preparado e retorqui-lhe com a sugestão de que talvez eu tivesse contado à sua mãe uma história que ouvira a uma mulher que conhecera na Bósnia, história essa que envolvia um cão preto com olhos vermelhos que aterrorizara a sua família. Se calhar ele ouvira-a quando era muito novo, continuei, e mais tarde, de alguma forma, meio que sonhara ou imaginara uma experiência semelhante. “Então agora achas que estou maluco?” perguntou ele. Não, não, não, apaziguei-o: as nossas cabeças estão cheias não só de pensamentos que conhecemos, que é aquilo a que chamamos o nosso consciente, mas também de pensamentos que não conhecemos, que é aquilo a que chamamos o nosso subconsciente, e quando os dois se misturam podemos ter experiências que se afiguram completamente reais apenas a nós e a mais ninguém. “Então estás a dizer que não foi mesmo real”, acusou o meu filho. Na verdade, eu não sabia o que estava a dizer e abanei a cabeça numa frustração confusa.
“Aconteceu”, disse ele. “Eu sei que aconteceu.” E olhou para mim como nunca me tinha olhado. Soube então que se tratava de um grande momento para ambos. “Tu acreditas em mim, não acreditas, pai?” perguntou finalmente o meu filho. Olhei-o nos olhos durante algum tempo antes de responder: “Acredito.”
Essa foi a última vez que falámos do assunto. Creio que foi também o início deste livro.
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