Educar não tem de ser um fardo e muito menos uma luta constante mesmo quando estamos perante uma criança controladora e que não se deixa cuidar. Partindo desta premissa, a psicóloga clínica Laura Sanches desconstrói o mito dos miúdos com “mau feitio”, a quem se chama crianças alfa para nos apresentar uma série de estratégias de empoderamento para que pais e cuidadores reclamem o papel de adultos responsáveis e capazes, em todas as fazes da vida, desde a infância até à adolescência. Estratégias que nos chegam à boleia do livro Como Educar Crianças Desafiantes? (edição Manuscrito), obra da qual publicamos um excerto: “O que é uma criança alfa”.
A autora apresenta-nos um caminho alternativo ao das birras intermináveis, às frustrações familiares e a possibilidade de encontrarmos a calma e a disponibilidade para acolher os sentimentos e as emoções das crianças.
Laura Sanches é autora de três livros sobre mindfulness e parentalidade positiva e, desde que se estreou no papel de mãe, em 2011, começou a dedicar-se às áreas da educação e do desenvolvimento infantil.
O que é uma criança alfa
As crianças alfa são aquelas que nunca ouvem, nunca obedecem e querem sempre decidir ou negociar tudo, o que muitas vezes deixa os pais desorientados, perdidos e com um sentimento de que estão, de algum modo, a falhar. Por isso, os pais entram numa luta interior e pensam que precisam de adquirir mais estratégias para lhes ensinar mais coisas ou impor mais castigos e encontrar novas noções de consequências. Mas não são os castigos nem as consequências que educam, nem tão pouco as recompensas. Não é nas estratégias punitivas ou de retribuição que está a chave para educar os nossos filhos ou quaisquer crianças que tenhamos ao nosso cuidado.
Estas crianças são quase sempre mal compreendidas e há a tendência para pensar que precisam de mais disciplina, de mais educação e de mais limites. Mas, na verdade, estas estratégias ou ferramentas por si só não irão resolver nada porque o mais importante é mudar a forma como olhamos para esta dinâmica. É preciso perceber que não se trata apenas de um problema comportamental que pode ser resolvido com recurso a estratégias dirigidas ao comportamento, como é o caso dos castigos e das consequências. Temos de olhar para as causas do problema e só quando o fizermos é que poderemos encontrar as nossas próprias estratégias e ferramentas.
Por isso, este não é um livro de receitas, muito menos de fórmulas universais que se apliquem a todas as crianças, mas um livro que pretende ajudar a perceber aquilo que pode estar a tornar os nossos filhos mais difíceis de educar e de que forma podemos recuperar aquilo que é essencial: o nosso lugar na vida deles.
Todas as crianças têm em si o potencial de se tornarem adultos maduros e conscientes, mas não vão chegar lá à força. Não se ensina ninguém a ser adulto e a prova disso é existirem muitos adultos que ainda não conseguem ser adultos uma boa parte do tempo. Não é a disciplina que nos faz crescer.
Aquilo que os pais têm de fazer é criar condições para que esse amadurecimento aconteça naturalmente, e a disciplina serve apenas para colmatar as faltas que as crianças têm, para as ajudar a viver de forma mais harmoniosa, integrada e tranquila. No entanto, não são elas que nos fazem crescer.
De forma quase trágica, as crianças alfa têm tendência para nos fazer perder a vontade de lhes dar aquilo de que mais precisam: amor, aceitação e confiança, o que faz com que seja um desafio gostar realmente de uma criança alfa que fica aos nossos cuidados — sobretudo quando não conseguimos ver a dinâmica que está na base do seu comportamento. E quando mostramos esta nossa dificuldade em dar-lhes aquilo de que mais precisam, que no fundo se resume ao amor incondicional, acabamos por acentuar ainda mais este conflito, entrando num ciclo do qual não conseguimos sair.
Vamos tentar perceber porquê e espero que este livro seja uma ajuda importante na descoberta daquilo que pode não estar a funcionar na vida destas crianças.
A primeira coisa a saber é que para mudar comportamentos temos de mudar relações. Não se muda uma criança sem mudar o contexto em que ela se desenvolve, ou seja, a relação e as ligações que se criam com os cuidadores. Não está em causa a quantidade de amor que sentimos pelos filhos, mas a forma como eles se permitem receber esse amor, e isto é diretamente influenciado pela forma como o comunicamos, transmitimos e, sobretudo, pela forma como o disponibilizamos. É nesse amor que as crianças podem crescer, descansar e amadurecer de verdade e cabe‑nos a nós, adultos, criar condições para que ele se mantenha presente e disponível, mesmo nos momentos mais difíceis… principalmente nos momentos mais difíceis.
As crianças alfa desafiam‑nos a acreditar que o amor pode não ser suficiente, fazendo‑nos sentir incapazes e insuficientes, por isso é que quando temos uma criança alfa nas mãos se torna ainda mais importante encontrar o nosso próprio instinto alfa, já que é ele que nos vai permitindo acreditar no amor, confiar na ligação e saber que temos tudo aquilo de que os nossos filhos precisam para crescerem e se desenvolverem. Já lá vamos! Para já, nunca é de mais lembrar e repetir em jeito de mantra que somos os melhores pais que os nossos filhos podiam ter, embora as crianças alfa nos façam duvidar disto muitas vezes.
Este livro pretende que nos fortaleçamos nesse sentido e nos lembremos de que é nesse amor que sentimos por eles e eles por nós, e na ligação que esse amor nos permite estabelecer, que estão todas as respostas.
Se optar por não ler mais nada daqui em diante, saiba que já tem em si tudo aquilo de que precisa para educar crianças felizes e confiantes. As páginas que se seguem pretendem ajudar nesse sentido, ser uma bússola para encontrar esse caminho, sendo que ele já existe dentro de si, só precisa de ser redescoberto e reativado. Se escolher continuar a ler, saiba que mais importante do que qualquer teoria ou direção é o conhecimento que cada um de nós tem sobre os próprios filhos, que são de facto únicos e que conhecemos melhor do que ninguém.
Por mais exigente que seja — que é! —, educar não tem de ser uma tarefa árdua, difícil e sofrida. Mas quando se tem uma criança alfa em mãos, é natural sentirmos que estamos num constante campo de batalha e que a nossa relação com os filhos se tornou um conflito permanente. A criança alfa, na sua essência, não é um problema, simplesmente precisa de ser ajudada a acreditar que pode descansar no nosso amor. As crianças alfa sentem que precisam de trabalhar por esse amor porque, em alguma altura das suas vidas, ele terá vindo com demasiadas condições ou incertezas. Assim, temos de as saber guiar no sentido de voltarem a acreditar que ele está sempre disponível.
Se é um facto que educar nem sempre é fácil, também é preciso estar atento aos sinais de alarme de uma relação em constante conflito. Quando isto acontece, quando parece ser sempre difícil, significa que a ligação que temos com os nossos filhos está a precisar de cuidados sérios e imediatos. Quando sentimos que não temos um momento de descanso na presença deles e que já não há quase nada de gratificante nessa relação, que se resume apenas a uma fonte de desgaste e de luta, estamos em sarilhos: isto é sinal de que precisamos de parar, refletir, olhar para dentro antes de começarmos a avaliar e a julgar o comportamento dos nossos filhos e, se for preciso, pedir ajuda para reencontrarmos o caminho para o nosso instinto e para os seus corações.
Quando educamos a partir do nosso lugar de adultos responsáveis, não desaparecem as discussões e as birras, mas podemos encontrar em nós a confiança de que sabemos lidar com elas e de que temos as respostas necessárias para enfrentar esses momentos sem que eles se tornem uma fonte demasiado grande de desgaste e pressão. E quando reencontramos essa nossa confiança, também encontramos filhos mais dóceis e mais tranquilos. Uma criança que confia nos pais é uma criança que não precisa de estar sempre em luta, que tem espaço para crescer e para amadurecer de verdade. É, por isso, muito importante que os pais sintam que são capazes de proteger os filhos e de lhes dar segurança e conforto. Mas esta proteção não é necessariamente algo físico ou material. Assenta sobretudo na relação que temos com eles e na certeza de eles saberem que existe sempre um caminho livre e desimpedido para o nosso coração.
Não podemos protege‑los de todos os perigos, não os podemos impedir de cair, de partir a cabeça, não podemos impedi‑los de ficarem doentes e de serem magoados. Não podemos criá‑los numa redoma de vidro na esperança de que o mundo não os magoe. Mas podemos fazer algo muito mais importante e poderoso: podemos dar‑lhes sempre um ombro para chorar, um colo para se deixarem confortar, um abraço onde podem curar as suas feridas. Afinal de contas, não precisamos de viver numa bolha para sermos felizes, antes pelo contrário, precisamos de não ter medo de estar no mundo, de não ter medo de correr riscos e de saber que, quando as coisas correm mal, há sempre um colo à nossa espera e um coração ligado ao nosso, pronto para dividir as nossas dores e partilhar o sofrimento. Porque todas as dores custam menos a suportar quando são partilhadas e o mundo parece sempre um lugar muito mais perigoso quando não temos um ombro à nossa espera.
Hoje em dia já se sabe que a dor da rejeição, uma dor com origem emocional e não física, que acontece quando nos sentimos postos de parte pelos pares ou pelas pessoas que nos são importantes, ativa no cérebro exatamente as mesmas zonas que se acendem quando nos magoamos no corpo, provando que este sentimento de ligação e conexão é fundamental, não só para a nossa saúde mental mas também para a nossa saúde física e, por isso, para a nossa sobrevivência enquanto espécie.
E é este sentimento de ligação e de segurança a maior proteção que podemos dar aos nossos filhos. É este sentimento que os poderá fazer sentirem‑se realmente seguros, mesmo quando tudo é difícil nas suas vidas. Mais do que protege‑los das quedas, precisamos de ser o colo que os ampara depois de caírem. Mais do que impedi‑los de sofrer ou de serem magoados pela vida, precisamos mesmo é de ser o ombro em que podem chorar.
Então, em momentos de crise e depois deles, precisamos de saber que temos em nós tudo aquilo de que os nossos filhos precisam para serem capazes de os ultrapassar. Ou seja, precisamos, mais do que nunca, de encontrar o nosso próprio instinto alfa e de saber que somos a resposta a tudo de que os nossos filhos necessitam para serem capazes de triunfar na vida e estarem bem, mesmo quando o tapete lhes foge de baixo dos pés. E somos essa resposta quando somos capazes de criar essa ligação segura e de lhes mostrar que ela é mais forte do que qualquer outra coisa na vida, que ela é indestrutível e incondicional, que existirá sempre e sobreviverá a tudo.
Este livro, que foi escrito a pensar nos pais e nas mães mas também em todos os que assumem um papel importante na vida das crianças como os professores ou educadores, é baseado no modelo de desenvolvimento de Gordon Neufeld, que coloca a relação no centro de tudo o que fazemos, e também nas neurociências, que nas últimas décadas nos têm trazido conhecimento novo sobre o desenvolvimento do cérebro e do sistema nervoso. Este livro assume que a corregulação (é o que acontece quando outra pessoa se sintoniza com as nossas emoções) é, de facto, a estratégia de sobrevivência principal para a nossa espécie e que é também através dela que podemos educar crianças felizes, saudáveis e com possibilidade de amadurecer de verdade.
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