No século XVIII, dois homens de origens distintas, mas da mesma geração, lançaram-se numa das maiores empreitadas intelectuais da humanidade: catalogar todas as formas de vida existentes no planeta. De um lado, Carl Linnaeus, médico sueco profundamente religioso e dotado de um espírito metódico quase comercial. Do outro, Georges-Louis de Buffon, aristocrata francês, polímata e diretor do Jardin du Roi, em Paris. Unidos pela ambição e separados pela visão de mundo, ambos mudaram a história da ciência.

“Ambos começaram por acreditar que a Terra não poderia ter mais do que alguns milhares de espécies, mas, à medida que as décadas passavam, os seus grandiosos compêndios continuavam longe de estarem completos. A surpresa da profusão da vida, da sua inesperada diversidade e cambiantes, conduziu-os a desenvolverem visões ainda mais fortemente divergentes do ambiente, do papel da humanidade na definição do destino do planeta, e da própria humanidade”. Estas são palavras que retiramos da introdução ao livro A Invenção da Biologia (edição Temas & Debates), obra vencedora do Prémio Pulitzer de Biografia 2025, assinada por Jason Roberts. Com uma prosa rigorosa, o autor já reconhecido por A Sense of the World mergulha em mais de uma década de investigação para reconstruir uma história esquecida.

Linnaeus acreditava numa natureza ordenada e estática, em que cada espécie ocupava um lugar fixo no grande catálogo da criação. Já Buffon via a vida como um organismo em fluxo, sujeito a forças desconhecidas e dinâmicas. Enquanto o sueco impunha ordem com nomes latinos, o francês questionava se a própria noção de espécie fazia sentido. Um defendia um sistema; o outro, um processo.

“A rivalidade entre os dois homens era profunda. Buffon, com um orgulho impressionante, deplorava publicamente Linnaeus como sendo a vítima ‘obcecada’ de uma mania, enquanto Linnaeus se deleitava em segredo ao designar uma espécie como Buffonia, numa referência ao seu arquirrival – uma planta com folhas frágeis, pois Buffon tinha ‘ realmente pretensões muito frágeis de vier a ser um vulto da botânica’”, lemos na introdução ao livro.

Roberts transforma esta tensão em narrativa — e vai além da biografia: o livro é também uma reflexão sobre como a ciência se constrói a partir de contrastes. O leitor é conduzido por jardins botânicos, gabinetes de curiosidades, expedições marítimas e disputas filosóficas, até chegar às origens da biologia moderna, com implicações diretas na classificação genética, na ecologia e nas políticas de conservação atuais.

Do livro, publicamos um excerto.

Cordeiros vegetais e árvores dos gansos

No fim do outono de 1729, dois amigos dividiram o mundo em duas fações.

Um deles era Carl Linnaeus, resgatado da indigência pelo seu encontro fortuito com o professor Celsius. Além de lhe proporcionar alojamento e alimentação, o seu novo mentor empenhou-se na sua formação académica, custeando-lhe os estudos durante mais um ano. Não estando já consumido pela manutenção de uma existência precária, Linnaeus pôde finalmente desfrutar os aspetos não académicos da vida de estudante: descontrair em cafés, envolver-se em debates extracurriculares e forjar amizades.

Peter Artedi, dois anos mais velho e originário da província de Ångermanland, no norte da Suécia, tinha antecedentes notavelmente semelhantes aos de Linnaeus. Também ele era filho de um pastor, com um apelido latino criado pelo pai. Fora igualmente educado para herdar o púlpito familiar, desenvolveu uma obsessão por história natural, mas tinha sido despachado para a escola médica. Meses antes, Linnaeus tinha reparado nele na biblioteca universitária e registara silenciosamente que os dois pareciam interessados nos mesmos livros, mas só sentira confiança para abordar Artedi havia pouco tempo. Assim que encetou conversa, as comportas abriram-se. “Começámos logo a conversar sobre pedras, plantas e animais”, recordou Linnaeus. “Eu queria a amizade dele; e ele não apenas ma deu, mas também me prometeu a sua ajuda sempre que eu precisasse dela.”

Janson Roberts
Janson Roberts Janson Roberts. créditos: Wikimedia Commons

Física e temperamentalmente, eram muito diferentes. Linnaeus descreveu Artedi como “alto, vagaroso e sério”, ao mesmo tempo que se descrevia a si próprio como “pequeno, frívolo, irrefletido e rápido”. Artedi tinha tendência para dormir o dia inteiro e trabalhar de noite, enquanto Linnaeus se levantava cedo e cumpria um horário tradicional. Mas rapidamente ficaram amigos, e determinaram que não se tornariam rivais. Como medida contra conflitos futuros nas suas carreiras, dividiram o mundo vivo entre os dois. Linnaeus estudaria insetos e aves, e Artedi dedicar-se-ia aos peixes (um termo então usado para todas as criaturas aquáticas), répteis e anfíbios. Os Trichozoologia (“animais peludos”) seriam catalogados em colaboração: cada um podia estudar todos os animais que quisesse, desde que informasse primeiro o outro. Sabendo que o principal interesse de Linnaeus residia nas plantas, Artedi escolheu atenciosamente apenas algumas delas, sobretudo as cenouras, a salsa e o aipo. Também concordaram que protegeriam o legado de cada um: prometeram que, em caso de morte de um deles, o outro ficaria com os materiais de investigação do falecido e continuaria o seu trabalho.

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No entanto, quando esta divisão amigável de todo o mundo vivo se aprofundou mais, Artedi e Linnaeus foram confrontados pelo facto de que, por muito claramente que tivessem desenhado as fronteiras, algumas espécies recusavam-se a respeitá-las. Por exemplo, havia o boramez, ou carneiro vegetal da Tartária. Alegadamente nativo de regiões da Ásia, limitadas pelo mar Cáspio, o boramez era um animal parecido com um carneiro vulgar, só que era uma planta. Emergia do solo suspenso de um caule que era uma espécie de cordão umbilical rígido: o cordeiro morreria se o cordão fosse cortado. Não vivia muito tempo, pois apenas podia pastar a relva no perímetro do seu tronco. A sua carne tinha um sabor parecido com a do carneiro, mas o seu sangue sabia a mel.

Havia depois a árvore dos gansos. Supostamente nativa de uma pequena ilha ao largo da costa do Lancashire, a árvore produzia frutos em forma de cracas, que caíam à água e, ao fim de alguns meses de submersão, emergiam como gansos. Este caso era particularmente difícil para as especialidades respetivas de Linnaeus e Artedi, por ser, em simultâneo, uma planta, um peixe e uma ave.

De acordo com o naturalista inglês John Gerard, estas conchas em forma de mexilhão cresciam até se abrirem, revelando as pernas da ave pendentes, até que com o tempo todo o corpo se torna aparente. A ave fica pendurada pelo bico até à sua maturação plena, altura em que é largada no mar, local onde desenvolve penas, e cresce muito até ficar maior do que um pato bravo, mas menor do que um ganso.

Seriam estas espécies fantásticas levadas a sério em 1729? Se excetuarmos alguns céticos, podemos dizer que sim. O cordeiro vegetal tinha um verbete próprio na Cyclopaedia, or a Universal Dictionary of Arts and Science, de Ephraim Chamber, publicada no ano anterior. Em Herball, de Gerard, publicado em 1636 mas usado como texto didático bem entrado o século XIX, a árvore dos gansos estava catalogada oficialmente lado a lado com a descrição de uma batata. O papa Inocêncio III tinha explicitamente proibido o consumo de gansos oriundos da árvore durante a Quaresma, por considerar que, apesar da sua reprodução invulgar, eles viviam e se alimentavam como os gansos convencionais e por isso tinham a mesma natureza que as demais aves. Na lei alimentar judaica, Rabbeinu Tam determinou que eram kosher, e deviam ser abatidas de acordo com as prescrições normais para as aves.

Na visão moderna, estas criaturas eram claramente impossíveis. O cordeiro vegetal terá surgido provavelmente de uma leitura errónea de Heródoto, que escreveu acerca de uma planta com um “fruto dotado de uma lã que supera em beleza e bondade a do carneiro”. Ele referia-se ao algodão. Até às determinações de Inocêncio III e Rabbeinu Tam, a árvore dos gansos foi talvez uma desculpa ficcional para os que queriam consumir carne de aves, e assim fingiam que se tratava de peixe. Para entender por que razão os naturalistas experientes documentaram a sua existência sem hesitação, é útil saber que era quase universal a aceitação de um plano diretor para a organização de toda a vida, um padrão comummente reconhecido como existente na natureza.

Era uma linha reta ascendente.

Popularizado inicialmente por Aristóteles na sua História dos Animais como o conceito de scala naturae, ou Escada da Vida, o diagrama era simples: uma simples linha de sofisticação crescente – conhecida habitualmente como “perfeição” –, ascendendo de uma singela vida vegetal na base até à humanidade no topo. A elaboração posterior ao longo dos séculos transformou os degraus da escada nos elos de uma cadeia, refinando a metáfora numa Grande Cadeia do Ser. Na base, a cadeia descia até à vida mineral. No topo estendia-se além da humanidade, até aos anjos e por fim ao próprio Deus. Criaturas como a árvore dos gansos e o boramez não chocavam ninguém como violações das categorias, pois constituíam, elas mesmas, categorias ou elos na cadeia. Quanto mais não fosse, os organismos intermediários, como os cordeiros vegetais e as árvores que frutificavam gansos, pareciam ligações necessárias entre dois níveis de perfeição.

O excêntrico mundo do século XVIII ofereceu-nos cordeiros vegetais e árvores dos gansos
O excêntrico mundo do século XVIII ofereceu-nos cordeiros vegetais e árvores dos gansos créditos: Wikimedia Commons

A Grande Cadeia do Ser era mais do que uma metáfora. Era um instrumento de poder temporal. Os pormenores variavam conforme a versão, mas muitas descrições da Grande Cadeia concediam aos reis e à nobreza elos próprios, imediatamente acima da gente comum, sancionando uma classe governante como parte integrante da ordem natural. Esta atitude seria codificada no hino do século XIX “All Things Bright and Beautiful”:

O homem rico no seu castelo

O homem pobre na sua cancela

Deus fê-los importantes ou humildes

E determinou a sua condição.

A Grande Cadeia reforçou a perspetiva monárquica também em domínios menos grandiosos. A águia foi elevada ao estatuto de “rainha” das aves.

Habitualmente, o elefante ou o leão eram louvados como reis dos animais, e a baleia como rainha dos peixes. O carvalho era o rei das plantas. Estendendo-se além dos seres vivos, a Grande Cadeia declarava o ouro rei dos metais, o diamante, rei das pedras preciosas, e o mármore, rei das rochas. No final do Renascimento, a Grande Cadeia do Ser exibia categorizações ainda mais precisas. Os animais silvestres ocupavam uma posição mais elevada do que os domesticados, visto que a sua natureza indomada era a prova de terem almas maiores. As aves que se alimentavam de vermes eram mais elevadas do que as que consumiam sementes. Os seres celestiais foram introduzidos no topo da hierarquia, com o serafim a corresponder à ordem mais elevada dos anjos – visto que um serafim era o rei, ou “primata”, dos anjos.

O excêntrico mundo do século XVIII ofereceu-nos cordeiros vegetais e árvores dos gansos
O excêntrico mundo do século XVIII ofereceu-nos cordeiros vegetais e árvores dos gansos créditos: Temas & Debates

O diagrama cresceu quer em complexidade, quer em aceitação, ao ponto de, em 1667, a académica Royal Society inglesa definir a sua missão em relação direta com a cadeia:

Este é o desígnio mais alto da razão humana: estudar todos os elos desta cadeia, até todos os seus segredos serem desvendados pelas nossas mentes; e as suas obras melhoradas e imitadas pelas nossas mãos. Isto é verdadeiramente dominar o mundo: classificar todas as variedades e graus de coisas de forma ordeira, umas acima de outras […] obtemos uma segunda vantagem deste terreno ascendente, porque olhamos mais de perto para o céu.

No entanto, apesar de todos os louvores tecidos ao longo dos séculos, a Grande Cadeia suscitou uma série de perguntas. Se o leão era o rei dos animais, haveria outros felinos situados mais alto na cadeia do que os cães? Os nutritivos nabos eram mais “perfeitos” do que as roseiras ornamentais? Estas questões eram debatidas por estudantes como Linnaeus e Artedi, mas não havia respostas claras.

◇ ◇ ◇

A respeitabilidade conferida pelo patrocínio de Celsius abrira outra janela de oportunidade a Linnaeus, nomeadamente o negócio lucrativo de dar explicações aos seus colegas estudantes de medicina. Eles procuravam-no em números crescentes, atraídos pela sua experiência do mundo real – ao contrário de muitos deles, Linnaeus passara um ano como assistente de um médico em exercício. O tempo que estivera com o Dr. Rothman na aldeia de Växjö seria, em última instância, a única formação significativa em medicina que Linnaeus teria, e naquele momento fazia dela um recurso valioso ainda que algo circunspecto.

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Rothman encetara a aprendizagem médica de Linnaeus instruindo-o em duas áreas. A primeira foi a fisiologia, a mecânica de funcionamento do corpo. Durante as rondas pela aldeia, encorajou Linnaeus a estudar a articulação dos membros de um paciente, para ver e sentir como os músculos e os ossos se ligam e se coordenam, e para verificar de que modo a doença ou a lesão impedem o movimento. Um lanho ou uma fratura eram uma oportunidade rara de visualizar instantâneos do interior do corpo, vislumbrados entre pulsações e sangue. Fora esta a razão pela qual Linnaeus tinha despendido a maior parte do dinheiro da sua bolsa para assistir à dissecção da mulher executada em Estocolmo: para confirmar a imagem mental que tinha do mundo existente sob a pele.

A segunda área era a materia medica, a identificação e preparação de substâncias utilizadas em medicina. Além de alguns artigos como a tintura de ópio, os medicamentos no sentido moderno do termo não existiam. Em vez deles havia um arsenal de unguentos, cataplasmas, elixires e outros preparados conhecidos coletivamente por physicks, um termo que deu origem ao nome dado aos médicos que os aplicavam: “físicos”. Precursora da farmacologia, a materia medicaera essencialmente um conjunto de receitas de physicks, acompanhado de instruções sobre a forma de obter os ingredientes terapêuticos necessários. Alguns tratamentos estavam prontamente disponíveis: aos pacientes que sofriam de letargia, diarreia ou dores pós-parto costumavam prescrever-se quantidades generosas de vinho, e os asmáticos eram tratados com rebuçados de açúcar-de-cana. Alguns physicks envolviam animais. O paludismo, por exemplo, era tratado envolvendo o paciente na pele de um cordeiro recém-abatido. Outros tinham natureza mineral. A paralisia, a halitose e a melancolia tratavam-se com Aurum potabile, uma suspensão bebível de partículas de ouro. Mas os ingredientes básicos da maior parte dos physicks provinham de plantas. Carl aprendeu a identificar as plantas e a aproveitar os seus componentes medicinais, rapidamente e com confiança.

Invulgarmente para a época, Rothman advertira Linnaeus contra o uso da Doutrina das Assinaturas, uma filosofia de materia medica que costumava ser aceite nessa altura. Com raízes na Pré-História, mas aperfeiçoada nos séculos XVI e XVII, era a crença de que cada planta fora concebida por Deus para servir um propósito humano específico, e que os indícios desse propósito estavam convenientemente incorporados no aspeto da planta. Assim, uma folha vermelho-viva era o sinal de que a planta fortalecia o sangue. A noz, cuja forma se assemelhava a um cérebro humano, tratava a doença mental. As plantas de odor forte, porque excitavam o olfato, excitariam os nervos de um paciente que as ingerisse. A ideia era abertamente errada e mesmo perigosa: a aristolóquia-menor, uma planta vulgarmente ministrada às grávidas porque a sua flor se parece com o canal de parto, está agora relacionada com a doença renal e o cancro. Mas esta ideia conservaria um lugar dominante na medicina durante várias gerações.

Embora a rejeição da Doutrina das Assinaturas por Linnaeus reduzisse a quantidade de pormenores a memorizar, nem mesmo a sua versão de materia medica podia ser apreendida apenas através dos livros. A maior parte dos textos sobre plantas medicinais, quando eram ilustrados, apresentavam apenas xilogravuras ou gravuras moderadamente detalhadas das plantas, sem a informação suficiente para o estudante conseguir identificá-las nos campos. Rothman dera a Linnaeus acesso a um exemplar da obra de referência sobre o tema, a Historia Plantarum, de Teofrasto, mas a confusão que ela gerava era superior à sua utilidade. Além de ter mais de dois mil anos (Teofrasto fora discípulo de Aristóteles), o texto descrevia apenas cerca de 500 variedades de plantas, poucas das quais estavam presentes no norte da Europa. Linnaeus tentou conciliar Teofrasto com as plantas do sul da Suécia, mas descobriu que “havia muitas que naquele tempo não tinham sido analisadas com precisão botânica suficiente e que, não sendo compatíveis com as regras daquele sistema, criaram grande perplexidade ao vosso jovem botânico [ele próprio]”.

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Até as plantas bem conhecidas eram difíceis de reconhecer nas páginas de Teofrasto, que apenas sabia descrevê-las por palavras, usando comparações agora obscurecidas por dois milénios. Por exemplo, a sua descrição do lótus-sagrado (Nolumbo nucifera) compara o caule à grossura do dedo de um homem, o rebento da flor a um ninho de vespa, e as lâminas das suas folhas a um chapéu tessálio. Que tamanho tinha um chapéu tessálio? A questão era tão misteriosa para Linnaeus como para Rothman, que aconselhou o seu aprendiz a não dar muita importância a Teofrasto, ou, em geral, a qualquer identificação clássica formal. “Conhecer uma palavra latina excêntrica ou o nome de uma planta não é nada”, foi o aviso que fez ao pupilo, recomendando-lhe que confiasse nos seus sentidos e na experiência de campo.

Porém, os nomes antigos eram um aspeto essencial da medicina europeia. Transcendiam as diferenças regionais, como ilustrava a árvore homónima de Linnaeus. Na Suécia chamava-se lind. Na Alemanha, Linden, na Roménia, tei, e em Inglaterra era basswood ou lime (esta palavra causava confusão adicional, pois não tinha relação com a árvore do citrino com o mesmo nome em língua inglesa [limeira, em português]). Mas um sueco, um alemão, um romeno e um inglês podiam falar da mesma árvore referindo-se-lhe como tilia, o termo usado nas traduções latinas da Historia Plantarum. O uso de nomes latinos era mais do que um tributo à Antiguidade; era uma ferramenta para a clareza contemporânea.

Esta prática exigia que se fosse além dos antigos. Era necessário atribuir nomes latinos às plantas que Teofrasto e outros da sua era nunca haviam mencionado. Este desafio era corporizado por um livro que Rothman disponibilizara a Linnaeus: Elementos de Botânica, ou Um Método para Reconhecer Plantas, do botânico francês Joseph Pitton deTournefort, laboriosamente traduzido para latim académico como Institutiones Rei Herbariae. A tradução levou cinco anos a ser realizada, pois fora necessário localizar ou inventar nomes latinos para cerca de sete mil plantas.

O excêntrico mundo do século XVIII ofereceu-nos cordeiros vegetais e árvores dos gansos
O excêntrico mundo do século XVIII ofereceu-nos cordeiros vegetais e árvores dos gansos créditos: Wikimedia Commons

A materia medica que Linnaeus aprendera – e que agora tentava ensinar aos seus colegas estudantes – era subtil e contextual, informada pela observação de que a aparência de numerosas plantas e mesmo as suas propriedades medicinais variavam durante o ano. Quando está madura, a flåderbår, ou baga de sabugueiro, é um ingrediente básico da cozinha sueca; não madura, assemelha-se menos a uma baga e mais a um tipo de ervilha, além de ser venenosa. Diferentes partes de uma planta correspondiam também a diferentes tratamentos, como sucedia no caso da tília, a árvore homónima de Linnaeus. Pondo de parte a dúbia Doutrina das Assinaturas (que defendia que as folhas cordiformes da tília combatiam a irregularidade do ritmo cardíaco), a experiência prática mostrava que um chá de tília – preparado com as flores, não com as folhas – podia combater a ansiedade. No entanto, o mesmo chá podia exacerbar sintomas como tonturas ou desorientação. Nesse caso, um tratamento melhor seria uma decocção preparada com a casca da mesma árvore. Linnaeus conseguia ensinar estes cambiantes no abstrato, mas a eficácia da medicina continuava a depender de tratamentos derivados da planta correta, e não de outra com aspeto semelhante. Como ter a certeza? Não dispondo de muito tempo para estar no campo, Tournefort oferecia uma alternativa.

Em rigor, Institutiones Rei Herbariae não fazia parte do currículo médico, porque continha plantas sem finalidade médica conhecida. Contudo, Linnaeus ficara encantado, não apenas pelo âmbito maciço do livro, mas também pela sua tentativa de organizar o tema num todo globalizante. O sistema de Tournefort separava as árvores das ervas, classificando estas com base nas características das pétalas. Como algumas plantas não têm pétalas (classificadas como “apétalas”), o seu diagrama não era um modelo de clareza, e mesmo esta abordagem reducionista não tardou a gerar complexidade. Depois de dividir as plantas em 22 grupos de formas de pétalas diferentes, Tournefort subdividiu estes em 698 genera, categorias amplas baseadas em outras semelhanças físicas. Tournefort não foi mais além. O subtítulo do livro era “um método para reconhecer plantas”, mas a divisão de quase sete mil plantas por cerca de 700 categorias só guiava o leitor em parte do caminho a percorrer para reconhecer espécies individuais. Para a identificação de campo, ou se levava consigo um livro muito volumoso ou se memorizava os 698 genera.

Linnaeus, o aprendiz de médico, tinha-os memorizado, mas Linnaeus, o tutor, descobriu que poucos dos seus colegas estudantes estavam interessados nesse esforço. Ou, na realidade, em qualquer grande esforço. Porque haviam de se dar ao trabalho? Os professores não faziam testes, não fomentavam debates na sala de aula e apenas avaliavam os estudantes com base em trabalhos escritos. Não sentindo que houvesse grande lugar para escrúpulos, Linnaeus pôs a correr discretamente esta informação: pela quantia adequada, não apenas editaria os trabalhos, mas também os escreveria. Este negócio dúbio manteve-o ocupado e bem remunerado até dezembro, altura em que surgiu outro projeto de escrita, e que ele temia: era preciso escrever um poema. Os estudantes de Uppsala, sob a mentoria de um professor, deviam presentear os seus mestres com um poema original de louvor no dia de Ano Novo. Linnaeus não se sentia minimamente à altura da tarefa de escrever em verso, mas a rotina de escrever para outrem e o tédio de tentar convencer os colegas a estudarem o livro de Tournefort começou a fazê-lo pensar numa abordagem simplificada e fácil de apreender para identificar plantas. Nos últimos dias de 1729 principiou a trabalhar numa dádiva alternativa para o professor Celsius. “Não sou poeta, mas algo próximo de um botânico”, escreveu ele em sueco, com cuidado para não borrar linhas nem desperdiçar papel. “Por isso ofereço-vos este fruto da pequena colheita que Deus me concedeu.”