“Nunca atingimos a rutura e nunca houve um dia em que disséssemos não temos luvas ou não temos máscaras, mas algumas vezes não sabíamos se tínhamos para o dia seguinte”, descreveu à agência Lusa José Barros, diretor clínico do Centro Hospitalar Universitário do Porto (CHUP), onde se inclui o Hospital de Santo António.
Este relato é confirmado pelos “heróis” da logística deste hospital, profissionais que em março de 2020 viveram ao ritmo do fuso horário da China e de outros mercados ligados aos equipamentos de proteção individual (EPI) e criaram métricas de controlo que algumas vezes geraram desconfianças internas, porque nem tudo quanto cada serviço pedia podia ser dado no imediato.
“A diferença é muito grande, porque antes da pandemia apenas clínicos utilizavam os EPI, nomeadamente as máscaras, e com a pandemia também os utentes passaram a usar. Generalizamos o consumo, não só dentro das áreas clínicas, mas também fora e quase que quadruplicamos o consumo de EPI”, descreve Rita Moreira, vogal executiva do conselho de administração do CHUP.
Também o diretor de logística do CHUP, Márcio Reis, conta que foram “muitas noites mal dormidas”, que “foi necessário criar regras muito claras e estabelecer algumas métricas como o perfil dos doentes internados em cada serviço, se eram de maior ou menor risco, qual a taxa de ocupação do serviço e histórico de consumo”.
“Às vezes os serviços não percebiam esta dinâmica e tínhamos situações de algum conflito”, acrescenta.
O Hospital de Santo António, que há pouco mais de um ano acolheu o primeiro infetado com o novo coronavírus em Portugal, consumiu 3,1 milhões de máscaras cirúrgicas entre março de 2020 e agora, enquanto no total dos 12 meses de 2019, ano pré-pandemia, foram necessárias 500 mil máscaras. Percentualmente, estes números traduzem-se num aumento de 520%.
Em março, abril e maio de 2020, o CHUP gastou 665 mil máscaras. Já em outubro, novembro e dezembro, meses associados à chamada segunda vaga da pandemia, foram necessárias 797 mil.
De acordo com informação remetida à Lusa pelo CHUP, só aos utentes foram distribuídas, até aqui, 460 mil máscaras, 409 mil das quais em 2020 e 51 mil nos primeiros meses deste ano.
O Santo António gastou mais de 15 milhões de pares de luvas ao longo dos 12 meses associados à pandemia. Já em batas de uso único, o aumento de consumo de 2019 face ao ano marcado pela covid-19 foi de 186%. Dezembro foi o mês ‘top’ de consumos, com mais de 2,1 milhões de máscaras, luvas, batas e respiradores utilizados.
Sem revelar no que se repercutiu este aumento em investimento financeiro, Rita Moreira conta que a especulação e a corrida aos ‘stocks’, algo transversal à escala mundial, resultou em preços “pornográficos” em março do ano passado, algo que está agora “estabilizado”, sendo já possível “comparar os valores atuais com os preços de início de 2020”.
“As máscaras chegaram a custar 100,1 vezes mais. Felizmente fomos rápidos a reagir e essa foi a nossa vantagem. Sabemos que aconteceram fraudes, mas o hospital nunca pagou adiantado. Assumimos esse risco porque eram muitos milhares de euros”, conta Rita Moreira, que tinha trabalhado em contexto de ‘commodities’ [transações comerciais de produtos de origem primária na bolsa de valores] e viveu uma espécie de regresso ao passado ao lidar com um mercado que, “de repente, se assemelhava a uma bolsa de valores”.
O CHUP tinha reforçado, em dezembro de 2019, os ‘stocks’ de medicamentos e EPI, antecipando em três meses as necessidades já a pensar na pandemia, mas a base usada para essa antecipação foram os consumos de 2019. Em janeiro de 2020 fez mais uma compra e alterou os critérios de distribuição, mas o impacto de notícias externas às vezes traduzia-se em açambarque interno, como o que aconteceu mais recentemente com as balas de oxigénio.
“A falta de oxigénio que houve em outros países, o caso do Hospital Fernando da Fonseca [Amadora/Sintra] causaram alarme. Tivemos de mostrar que não ia acontecer e tomámos conta desse processo”, conta Rita Moreira.
Márcio Reis diz que “a informação mediática” criou impacto direto nas cadeias de abastecimento, cabendo à logística “gerir muito bem” as preocupações dos serviços que “reagiam às notícias mais ou menos alarmantes”, fossem elas em Portugal ou em outras partes do mundo, “com o impulso de tentar criar ‘stocks’ de segurança”, tudo em defesa dos seus doentes.
Em jeito de balanço de um ano atípico para todos, estes profissionais que não usam bata nem estetoscópio também destacam como “essencial” para evitar ruturas a articulação “permanente” com a Comissão de Controlo de Infeção e de Resistências aos Antimicrobianos (CCIRA), bem como a “generosidade” da sociedade em geral e do tecido empresarial.
Desde a academia que colocou as suas impressoras 3D a trabalhar para produzir óculos e viseiras, às empresas que ofereceram produtos, como uma ligada à área da petroquímica que descarregou duas toneladas de álcool no hospital ou outra que produz sabonetes e ofereceu milhares de frascos e doseadores, uma vez que eram necessárias embalagens com urgência.
“E fomos o primeiro hospital do país a fazer a sua solução de álcool gel”, contam. Para que esse processo resultasse foi preciso ir ao museu do CHUP buscar um alcoómetro antigo para reduzir de 96 a 70 graus o álcool a usar para dar corpo a uma receita que tinha sido partilhada pela Organização Mundial de Saúde.
A pandemia de covid-19 provocou, pelo menos, 2.611.162 mortos no mundo, resultantes de mais de 117,5 milhões de casos de infeção.
Em Portugal, morreram 16.617 pessoas dos 811.948 casos de infeção confirmados.
A doença é transmitida por um novo coronavírus detetado no final de 2019, em Wuhan, uma cidade do centro da China.
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