Os animais têm muito a ensinar-nos acerca da mente e do corpo humanos; o terreno biológico comum entre os seres humanos e os outros animais pode ser estudado para diagnosticar, tratar e curar pacientes de todas as espécies. Esta é a abordagem interespécies, defendida pela médica e investigadora Barbara Natterson-Horowitz e a jornalista de ciência Kathryn Bowers, autoras norte-americanas que apadrinham um novo nome, zoobiquidade, também título de um livro.
Zoobiquidade (edição Pergaminho) explora muitos dos problemas de saúde comuns a seres humanos e outros animais, trazendo à luz descobertas reveladoras sobre potenciais tratamentos para doenças como a diabetes, o cancro, e doenças cardíacas e mentais. Uma investigação que vai além dos campos académicos e médicos, abordando temas e questões das mais diversas áreas: o que têm em comum uma tribo de símios e uma empresa da Fortune 500? O que há de semelhante entre os sistemas políticos humanos e os comportamentos territoriais de alguns animais? E será que todos os animais - e não apenas nós - procuram conforto na comida e fuga em narcóticos? Ou exibem sintomas de depressão?
No caso vertente, publicamos um excerto do capítulo 7 (“Planeta Gordo: Porque engordam e como emagrecem os animais”), um exercício de analogia das autoras entre a disponibilidade alimentar dos animais em cativeiro (e não só) e aquela que os humanos encontram nos modernos sistemas alimentares. Uma abordagem que não esquece questões ambientais e evolucionistas.
Planeta Gordo: Porque engordam e como emagrecem os animais
Nunca, em todos os meus anos de contagem de calorias, esperei vir a receber conselhos de um urso-pardo sobre dietas; no entanto, ali estava eu, numa sala de conferência às escuras com cerca de uma centena de veterinários do zoo, a ouvir, maravilhada, uma apresentação sobre Jim e Axhi, dois obesos ursos-pardos do Alasca que habitavam o Brookfield Zoo, em Chicago, e que tinham perdido centenas de quilos.
Quem nos revelava o segredo era Jennifer Watts, a descontraída nutricionista de Brookfield, uma doutorada que supervisiona a dieta dos animais do jardim. No ecrã ao seu lado estava projetada a fotografia do “antes”. Era exatamente como estar a assistir ao meu momento favorito dos programas de mudança de visual: os segundos que antecedem a “revelação”. As barrigas trepidantes dos ursos do “antes” por pouco não tocavam no chão.
Um oceano de pregas ondeava pelos seus flancos. Os anos de excesso de comida tinham inchado os seus rostos e eliminado qualquer vestígio de pescoço.
Foi então que Watts mostrou a fotografia do “depois”. Ouviram-se alguns risos bem-dispostos dos médicos à minha volta. A diferença era enorme. Esbeltos e brilhantes, os ursos tinham um aspeto, simplesmente, mais saudável. Se fossem meus pacientes, também eu estaria a respirar com mais facilidade, sabendo que, além do peso, o risco de desenvolver problemas de saúde relacionados com a obesidade tinha acabado de cair a pique.
Apesar de ser cardiologista, há dias em que me sinto mais uma nutricionista. Pacientes, família e amigos, todos eles me perguntam com frequência: “0 que devo eu comer?” Por esta altura, já todos sabemos que más escolhas alimentares e quilos a mais no corpo podem fazer com que fiquemos doentes. Obesidade, aumento de peso, “comer bem”: preocupações que se situam exatamente no centro da Medicina preventiva moderna.
Ainda assim, ao ouvir Watts falar dos ursos-pardos, apercebi-me de uma coisa simultaneamente espantosa e óbvia: os humanos não são os únicos animais do planeta que engordam – e, ao que parece, não são só os gordalhufos do costume, como os hipopótamos e as morsas, quem carrega esses quilos a mais. De aves a répteis, peixes a insetos, há uma enorme variedade de animais que ganha – e depois perde – peso; e fazem-no sem pedir molhos à parte e sem iniciar autênticas cruzadas de emagrecimento que envolvam injeções, comprimidos, psicoterapia e, até, cirurgia. A engorda no mundo animal tem um enorme potencial como lição para os humanos – incluindo aqueles que procuram dietas para perderem algum peso e médicos que lutam contra a obesidade, um dos desafios mais sérios e devastadores do nosso tempo.
Até àquele momento, contudo, simplesmente nunca me tinha perguntado: Os animais ficam gordos? É provável que quase todos nós tenhamos ouvido dizer que estamos a passar por uma “epidemia de obesidade”. Há milhões de pessoas a lidar com este distúrbio potencialmente fatal. Por todo o mundo, a comunidade médica procura uma cura.
O que talvez seja surpreendente nesta epidemia de obesidade, no entanto, é que nem sequer me estou a referir a humanos com excesso de peso (pelo menos, não para já). Há uma outra epidemia de obesidade entre nós. Atinge os nossos cães e gatos, cavalos, aves e peixes. Em toda a parte, os animais domésticos estão mais gordos do que nunca, e continuam a ganhar peso.
É difícil ter números exatos – em parte porque donos e veterinários nem sempre reconhecem que o seu querido Labrador ou gatinho passou de bem alimentado a, na realidade, anafado. De qualquer modo, os estudos efetuados nos Estados Unidos e na Austrália colocam o número de cães e gatos obesos e com excesso de peso algures entre os 25% e os 50%. (Para já, os animais ainda estão numa melhor posição do que nós – a percentagem de adultos humanos nos EUA que está agora com excesso de peso ou obeso situa-se próxima de uns surpreendentes 70%).
Com os quilos a mais dos nossos animais de estimação surge um familiar conjunto de questões de saúde ligadas à obesidade: diabetes, problemas cardíacos, distúrbios musculoesqueléticos, intolerância à glicose, alguns tipos de cancro e, possivelmente, hipertensão. São questões familiares porque vemos problemas quase idênticos nos pacientes humanos obesos; e tal como acontece na nossa população, estas doenças ligadas ao peso provocam frequentemente a morte prematura de cães e gatos.
Os esforços efetuados para combater o excesso de gordura nos animais ser-nos-ão também familiares. Alguns cães tomam medicamentos de controlo de peso de modo a moderar o seu apetite. A lipoaspiração tem sido o tratamento preferencial de alguns caninos gravemente obesos, cujo peso extra ameaça danificar-lhes a coluna ou deslocar-lhes a anca. Os nossos companheiros felinos seguem a dieta “Catkins” – a versão veterinária da em tempos popular dieta Atkins para os humanos, focada no consumo de proteínas e na redução de hidratos de carbono.
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Os pássaros com excesso de peso são tantos que até têm uma alcunha para eles: bolinhas aéreas. Os animais exóticos que habitam em contextos não-naturais também estão a ficar maiores. Preocupados com os riscos do excesso de peso, os veterinários dos jardins zoológicos europeus e norte-americanos têm posto vários animais, de flamingos a babuínos, em dietas de emagrecimento. Muitos desses regimes vão beber a estratégias utilizadas em programas de perda de peso humanos.
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No Zoológico de Indianápolis, os tratadores têm tentado encorajar os rotundos ursos polares a mexerem-se dentro do seu recinto, aliciando-os com guloseimas à base de gelatina, artificialmente adoçada e sem calorias, em vez de recorrerem aos habituais marshmallows açucarados e melaço.
Em Toledo, no Ohio, oferecem-se biscoitos especialmente criados, com baixo teor de sal e ricos em fibras, às girafas rechonchudas, substituindo assim as bolachas cheias de porcarias que recebiam até à data.
Aquilo que todos este animais corpulentos partilham, e aquilo que os coloca numa categoria à parte dos seus primos e antecessores selvagens, é uma coisa: quem os alimenta somos nós. Estão maioritária ou completamente dependentes dos humanos para as refeições, e somos nós quem regula a qualidade e a quantidade de tudo o que passa pelos seus lábios e bicos.
Deste modo, só há uma conclusão possível: nós, a espécie que tanto manipula a comida de modo a torná-la menos saudável e que tem a inteligência para compreender quais os motivos para não a comer em demasia, somos os culpados. Somos responsáveis não só pelas nossas ancas que ganham volume como pelas dos animais de que tomamos conta.
A própria vivência ao lado de humanos pode ser o suficiente para que os animais engordem rapidamente. As ratazanas citadinas que percorrem os becos de Baltimore, por exemplo, engordaram a cada década cerca de 6%, de 1948 a 2006, presumivelmente devido ao facto de a sua alimentação vir maioritariamente de caixotes do lixo humanos e dispensas. Estas ratazanas sofreram ainda um aumento de 20% nas hipóteses de virem a desenvolver obesidade. De qualquer modo, é provável que os nossos restos, ideais para engordar, não tenham sido a única causa deste aumento nos roedores.
A própria vivência ao lado de humanos pode ser o suficiente para que os animais engordem rapidamente.
É agradável pensar -se que os animais que vivem nos seus meios naturais, comendo o que “devem” (os alimentos não processados com que evoluíram), permanecem esguios e saudáveis sem esforço. Na realidade, não é o que se passa. Imaginei desde sempre que, num meio selvagem, os animais comem até estar satisfeitos e depois param. Na verdade, se tiverem a hipótese, muitos dos peixes, répteis, aves e mamíferos selvagens entregar-se-ão à gula, por vezes de modo espetacular – e inclusivamente com alimentos naturais e saudáveis. Abundância e acesso: os dois inimigos de muitas pessoas em dieta que dão igual trabalho aos animais selvagens.
Ainda que imaginemos que não é fácil encontrar comida no mundo selvagem, em certas alturas do ano e consoante as circunstâncias, o fornecimento pode ser ilimitado. As sementes encontram -se espalhadas em todos os campos. A areia e a vegetação estão cobertas de larvas. Há ovos disponíveis sob cada folha. Os arbustos enchem -se de bagas. O néctar escorre das flores. Em contextos de tanta abundância, os animais empanturram-se. Muitos param de comer apenas quando o seu trato digestivo não consegue, literalmente, aguentar mais comida. Já se observaram saguis a comer tantas bagas de uma só vez que os seus intestinos ficaram sem capacidade, fazendo com que, quase de seguida, excretassem as mesmas bagas, inteiras, que tinham acabado de engolir.
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Portanto, os animais selvagens engordam do mesmo modo que os humanos: em meios com acesso fácil a comida abundante. É claro, os animais também engordam normalmente – e de modo saudável – como resposta a ciclos sazonais ou de vida (já voltaremos a este assunto); no entanto, o que é fundamental reter é o facto de que o peso de um animal pode variar de acordo com o ambiente em seu redor.
Esta visão zoobíqua do tema fez-me olhar para o assunto de um modo menos simplista acerca do como e do porquê de os animais ficarem gordos. Relembrou-me que o peso não é apenas um número estático num gráfico; antes, é uma reação dinâmica e permutável a uma vasta diversidade de processos internos e externos, do cósmico ao microscópico. Isto lembra-me uma coisa que ouvi certa vez um colega dizer sabiamente: “A obesidade é uma doença do meio ambiente”.
Richard Jackson é professor catedrático de Ciências da Saúde Ambiental na UCLA e antigo diretor do National Center for Environmental Health no CDC. Num vídeo gravado em 2010, podemos assistir à sua apaixonada explicação: “um dos problemas com a epidemia de obesidade é o facto de culparmos frequentemente a vítima. Sim, todo e cada um de nós devia ter mais autocontrolo e mostrar mais força de vontade; mas quando toda a gente começa a desenvolver o mesmo conjunto de sintomas, o problema não está nas suas mentes, mas sim naquilo que existe em nosso redor e que está a afetar diretamente a nossa saúde. E o que está a mudar no nosso meio é o facto de termos começado a criar alimentos perigosos, alimentos carregados de açúcar, alimentos com elevados níveis de gordura, alimentos com elevados níveis de sal, tornando-os a coisa mais acessível de todas, tornando-os o produto mais barato, e, sim, sabem bem, mas não são o que devíamos estar a comer”.
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Consumimos as armas de destruição maciça mesmo que todo o nosso treino e experiência nos digam para não o fazermos. Um inquérito de 2012 feito a quase 300 mil médicos norte-americanos revelou que 34% dos cardiologistas têm excesso de peso, sendo 4% deles obesos. Há efetivamente forças que ultrapassam o nosso saber e autodeterminação em jogo no momento em que comemos.
O que está a mudar no nosso meio é o facto de termos começado a criar alimentos perigosos, alimentos carregados de açúcar, alimentos com elevados níveis de gordura, alimentos com elevados níveis de sal, tornando-os a coisa mais acessível de todas.
Peter Gluckman, biólogo evolucionário, diz que a obesidade dos dias de hoje é um exemplo de "divergência", o alargamento do abismo que separa a nossa herança genética do nosso meio ambiente. (Herdámos dos nossos antepassados naturais os comportamentos alimentares que, evoluindo, nos mantiveram vivos através da doença e da fome; no entanto, graças à cultura humana, criámos um contexto divergente que promove refeições processadas prontas a comer e trotinetes elétricas.
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Segundo Peter Nonacs, biólogo evolucionário da UCLA, grama a grama, a carne e os açúcares processados oferecem a maior quantidade de nutrientes com a menor quantidade de esforço. São fonte de mais calorias, além de mais digestíveis. Citando -o: “Não é preciso comer muita carne para se conseguir sobreviver”. Recolher uma pilha de sementes requer muito trabalho. Mastigar fardos de erva requer energia. Se uma formiga ou uma marmota tiver a oportunidade de passar por cima disso e de ter acesso direto aos nutrientes, é o que fará.
Os biólogos evolucionistas julgam que o desejo de proteínas – dentro do qual se inclui o gosto pela gordura e pelo sal – é um mecanismo muito antigo e preservado desde há muito. A vontade de ingerir açúcar é provavelmente um pouco mais recente, talvez surgida há cerca de 100 milhões de anos, quando as plantas começaram a florir e a concentrar açúcares nas suas sementes e frutos. Como humanos, partilhamos antepassados – e talvez partilhemos também impulsos – com animais que consomem proteínas e açúcar.
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Se os animais partilharam o impulso de obter proteínas, gordura, sal e açúcar durante centenas de milhões de anos, é quase ingenuamente otimista pensar que conselhos sinceros como “tenta resistir à vontade de comer comida de plástico” e “faz uma alimentação saudável” sejam qualquer espécie de competição.
Os atuais produtores de alimentos, talvez cinicamente, apanharam boleia destes impulsos evolucionários ao apostarem em maiores quantidades desses elementos nos seus produtos. Há um motivo pelo qual “não é possível comer apenas um” – na mesma situação, uma marmota também não o conseguiria fazer.
E, por vezes, não tem mal nenhum. O peso dos animais sobe e desce – nalguns casos, dramaticamente e várias vezes ao longo do ano. Por todo o reino animal, isto é sinal de saúde. Na verdade, os nutricionistas dos zoológicos não estabelecem metas de peso únicas para os animais que têm ao seu cuidado; o que fazem é estabelecer margens de peso, e ficam preocupados se os animais, de girafas a cobras, não vão de um limite ao outro dessas margens, dependendo da época e da fase das suas vidas.
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No caso dos animais selvagens, no entanto, a Natureza impõe o seu próprio “plano de manutenção de peso”. Uma das formas mais comuns é através de períodos de falta de comida. As ameaças predatórias limitam o acesso aos alimentos. O peso sobe, mas também desce. Se se quiser perder peso como os animais selvagens, basta diminuir a abundância de comida à nossa volta e interromper o acesso à mesma; e perder muita energia na caça diária por comida. Por outras palavras, mudar de contexto.
Isto é algo que muitos zoológicos começam agora a fazer. Estando no jardim zoológico de Copenhaga na altura certa, é possível assistir a uma coisa que dificilmente se verá noutros equiparados pelo mundo. O cadáver de uma impala está no centro de um recinto. Sobre ela, como moscas por cima de uma fatia de salame esquecida, encontra-se uma dúzia de leões. O macho adulto, com a sua juba distintiva, senta -se num dos topos, atacando a garganta e o rosto do animal. Duas fêmeas principais agacham -se junto ao macho, mastigando metodicamente. Dois ou três dedicam -se ao abdómen da carcaça, soltando os órgãos no seu interior. As crias – tão descoordenadas e trapalhonas como cachorros – esgueiram-se por entre os mais velhos, retirando bocas cheias de carne, com os queixos a escorrerem sangue. Ouve -se um burburinho macabro de ronronares rosnados, intervalados pelo som distintivo de dentes a partirem ossos. Estes felinos de grandes dimensões comem até praticamente não se conseguirem mexer, notando-se nas pálpebras descaídas um torpor de prazer.
Este simulacro de um festim na savana africana, criado por humanos, tem o nome de “refeição de carcaça”. Os nutricionistas do Zoológico de Copenhaga e os outros que alimentam os seus leões, tigres, chitas, lobos, chacais e hienas escolhem a presa cuidadosamente. Certificam-se de que a carcaça não tem doenças e de que é nutritivamente apropriada. É muito frequente o animal comido vir de outra parte do zoo, eutanasiado e “reciclado” em refeição para os carnívoros. Os defensores desta prática afirmam que este tipo de refeição completa (cascos, pelo, olhos, tudo) oferece aos comedores de carne um gosto figurado e literal daquilo que consumiriam em liberdade, tal como a Natureza o estabelecer.
No entanto, os difamadores (maioritariamente na América do Norte e nalgumas partes do Reino Unido) acusam-nos de crueldade, já para não referir o efeito negativo em famílias que estejam a visitar o jardim, pouco acostumadas a carnificinas naturais. Assim, ainda que muitos sejam pessoalmente a favor das refeições de carcaças, os nutricionistas dos zoológicos norte-americanos e britânicos cedem à opinião pública. Servem carne que já foi retirada dos ossos ou completamente passada. Nas ocasiões em que dão ao animal, digamos, uma grande perna ou um quadril sangrento, fazem-no nos bastidores (“fora do circuito de visitas”) ou já fora do horário de funcionamento do local.
Unir o modo como um animal se alimenta em cativeiro com o modo como se alimentaria em liberdade é um desafio para os veterinários que cuidam deles e para os nutricionistas que compõem as ementas.
Quando perguntei a Mads Bertelsen, veterinário no Zoo de Copenhaga, qual era a sua opinião acerca da utilização de carcaças de animais, ele foi pragmático: “é o que os animais fazem”. Segundo ele, os zoos que o evitam com medo da resposta pública estão “a vergar -se a uma minoria de pessoas histéricas”.
Unir o modo como um animal se alimenta em cativeiro com o modo como se alimentaria em liberdade é um desafio para os veterinários que cuidam deles e para os nutricionistas que compõem as ementas. Em liberdade, um animal tem, em circunstâncias ideais, liberdade para escolher e comer a refeição mais saudável e equilibrada em que conseguir enfiar as garras ou os dentes; mais importante, a alimentação que faz encontra -se intimamente ligada às muitas atividades – tanto físicas como cognitivas – que o animal tem de superar de modo a obtê-la.
No zoológico de Bertelsen, tal como em muitas outras instituições que utilizam carcaças, os carnívoros costumam jejuar nos dias que se seguem à refeição, seguindo o modelo dos padrões naturais de alimentação -jejum de alguns animais selvagens.
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A alimentação através da utilização de carcaças é um modo de devolver o poder de decisão às patas e focinhos dos animais em cativeiro. Espalhar criativamente pelo recinto alguns itens típicos de alimento, como vagens, é outro. Faz com que o animal tenha mais controlo e desafios do que, simplesmente, ao comê-los de uma tigela. Mudar o espaço que rodeia o animal de modo a melhorar a sua saúde ou bem-estar tem o nome de “enriquecimento ambiental”.
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Atualmente, assim como muitos animais de estimação e do zoológico, a maior parte das pessoas já não se preocupa com a possibilidade de não ter a próxima refeição (infelizmente, uma em cada sete pessoas ainda o faz); no entanto, à medida que, mais e mais, recorremos ao setor agroalimentar, aos supermercados e às cadeias de restaurantes para definir onde e o que comemos, estamos não só a passar-lhes o inconveniente de encontrar e preparar comida, como também, por outro lado, o desafio, o puzzle e até a excitação de comer. Assim como se passa no caso dos animais em cativeiro, a alimentação humana moderna foi-se afastando da complexidade fisiológica e comportamental dos impulsos e decisões que a seleção natural nos forçou a desenvolver.
Ao dizer que a obesidade é a “doença do meio ambiente”, Richard Jackson refere -se a este contexto engenhosamente construído por nós, à comida em que andamos a mexer, ao marketing que nos diz para consumi-la, às conveniências da redução de atividade que fizeram com que nos tornássemos mais sedentários do que nunca. Viver com abundância de comida de rápido acesso irá causar obesidade, independentemente da espécie a que se pertença.
A perspetiva zoobíqua desta questão, todavia, revela outros fatores ambientais, fatores que nem sequer vemos e sobre os quais raramente achamos estarem a desempenhar um papel no desenvolvimento da obesidade. Ao que parece, há fatores cósmicos e microscópicos que influenciam o apetite e o metabolismo – forças de uma natureza mais complicada e inesperada do que porções, tamanho, contagem de calorias e níveis de exercício; e que tornam a história sobre o aumento de peso dos animais uma coisa muito, muito mais interessante.
Todos os outonos, pela segunda semana de outubro, os dois jacarés machos do Brookfield Zoo deixam abruptamente de comer. Nos cerca de seis meses seguintes, Gaston e Tiboy recusam qualquer comida. Chegando os primeiros dias de abril, ao começarem a rugir e a carregar contra os tratadores, Jennifer Watts, a nutricionista, sabe que eles estão prontos para voltar à sua dieta de ratazanas e coelhos até ao próximo outubro, momento em que voltarão a parar.
Há um motivo para o calendário dos jacarés ser tão exato: exatidão. Como todos sabemos, a vida anual do nosso planeta corre previsivelmente de estação em estação. A quantidade diária de luz solar aumenta e diminui com uma regularidade perfeita, dependendo da fase do ano e da latitude.
O ciclo circadiano, em conjunto com o ciclo diurno da viagem anual do planeta em redor do Sol, influencia a fome, o apetite, a ingestão e até a digestão.
Também a vida diária segue um esquema regular simultaneamente grandioso e profundamente familiar. Todos os dias, tal como acontece há milhões e milhões de anos, a luz sucede a escuridão no estável ciclo circadiano do planeta. Há mais de três mil milhões de anos que as criaturas da Terra, começando com os primeiros organismos unicelulares, evoluem em consonância com este simples facto. O ciclo circadiano, em conjunto com o ciclo diurno da viagem anual do planeta em redor do Sol, influencia a fome, o apetite, a ingestão e até a digestão.
Há 30 anos, no início dos meus estudos de Medicina, tive de sair de um seminário sob a gargalhada geral da plateia quando me ouviu sugerir que os ciclos diurno e circadiano estavam de algum modo relacionados com escolhas alimentares e nutrição, já para não falar em obesidade. Estas forças eram como as curiosidades do Old Farmer’s Almanac – curiosamente consistentes e previsíveis, observadas em plantas e animais, mas popularuchas e suficientemente imperscrutáveis para serem difíceis de utilizar em qualquer tipo de sentido científico.
Tudo isso mudou nesta última década. Os biólogos moleculares identificaram a base subjacente ao ciclo circadiano: os “relógios” no nosso corpo que marcam o tempo. Até à data, conseguíamos pressentir o seu tiquetaque inaudível, mas agora podemos subitamente ver quantos existem e o quão variados são, e sem nunca perderem a sua consistência e regularidade.
Imagem de abertura do artigo cedida por Freepik.
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