Ao deter-se na História nos seus livros e endereçá-los ao grande público, não apenas académicos, sente que trava uma batalha contra um tempo de desinformação, de manipulação e de superficialidade?
É uma questão sobre a qual penso muitas vezes porque, de facto, vivemos num mundo em que já não se trava apenas uma luta contra as fake news. Atrevo-me a dizer que, frequentemente, a própria informação que é vinculada pelos meios de comunicação social mainstream é perfeitamente desinformada. Cito como epígrafe no meu livro que a verdade é a primeira vítima da guerra [citado a partir de Ésquilo]. A desinformação a que me refiro cria um clima de medo. As pessoas aceitam tudo aquilo que lhes é imposto, o que é uma coisa tremenda. À conta do medo que sentem, da necessidade de segurança que lhes é incutida, as pessoas abdicam da sua liberdade. Alguém referiu que quando as pessoas têm de escolher entre a liberdade e a segurança, acabarão por perder as duas. É isto o que sinto neste momento. As pessoas estão a perder o senso crítico, ou melhor, estão a perder o bom senso. E isto é algo incutido diariamente à boleia de uma comunicação social perfeitamente engajada.
Sente que o tempo que vivemos é frustrante para o historiador?
Julgo que este é um tempo frustrante para toda a gente com bom senso. Em relação ao historiador, enfim, há ainda uma ínfima parte de mim que se esforça por acreditar que o tempo reporá as coisas no seu devido lugar. Às vezes demora demais. Mas, francamente, vivemos tempos bárbaros.
As pessoas estão a perder o senso crítico, ou melhor, estão a perder o bom senso. E isto é algo incutido diariamente à boleia de uma comunicação social perfeitamente engajada.
Logo a abrir o livro, reproduz uma frase de John le Carré. Em síntese, dizem-nos estas palavras que todos os governos mentem, os peritos enganam-se, os bombardeamentos aéreos não resultam, os jornalistas não escrevem bem os nossos nomes. Na década de 1990, o escritor parece ter adivinhado este nosso tempo?
Sim. John le Carré escreveu essas palavras num artigo para uma revista norte-americana. O artigo foi republicado num jornal e eu guardei essa peça porque é extraordinária, quase premonitória. Inclusivamente, é uma peça escrita por um homem que conheceu os meandros da guerra, também da Guerra Fria e da espionagem, da propaganda e da falsa informação.
É curioso, pois John le Carré não alinhou no tom eufórico que muitos tiveram na época, com o anúncio do fim da História aquando do fim da Guerra Fria, com a visão de um paraíso liberal e de uma economia neoliberal desregulada. Veja-se onde chegámos. Era óbvio, não acha? Carré, num tom um pouco desiludido, termina o artigo com algo escrito desta forma: bem, nós ganhamos, mas… Aliás, o autor escreve algo do género que para aqui chegarmos [ao ano de 1993] tivemos muitas vezes de lidar com governantes estrangeiros que nenhuma pessoa decente convidaria para jantar. Isso continua hoje.
Há pouco referia a parcialidade dos media, uma questão que também leva para a introdução do seu livro. Não posso deixar de associar esta questão à propaganda. Estarão os media a deixar-se levar de forma acéfala pela propaganda ou estarão ao serviço da mesma?
Ambas. Basta vermos como é que, atualmente, se constroem as notícias nas redações. Para já, talvez fosse bom começarmos por ver quem é que detém os meios de comunicação social: diz-me quem manda em ti, dir-te-ei o que é que tu fazes. A partir daí, é lógico que existe uma série de condicionalismos extraordinários sobre as pessoas que, das duas uma, ou gostam de pensar um bocadinho diferente, ou querem investigar um pouco mais. Pergunto-me se hoje, por exemplo, algum jornal teria 10% dos meios que tiveram os dois jornalistas que investigaram o caso Watergate? Este, hoje, passaria absolutamente incólume. Aliás, temos um caso recente, aquele que se prendeu à invasão do Iraque ao abrigo da suposta existência de armas químicas que, enfim, os governantes que incentivaram aquela invasão sabiam que não havia.
Antes de ser um livro sobre a propaganda na década de 1940, esta sua obra pode ser vista como um manual de defesa para a propaganda do nosso tempo?
Sem dúvida. A grande diferença é que no presente temos uma outra dimensão nesta questão, as redes sociais. Estas também condicionam bastante o trabalho jornalístico, porque acostumaram o público à acefalia. Quem é que no presente se senta tranquilamente a ler um artigo de jornal de página inteira? Mesmo que possam lê-lo num outro suporte digital, as pessoas não leem. Logo, se alguém fizer uma análise fria, crítica, independente, com argumentos decentes, de um dos grandes conflitos modernos quem é que lê aquilo?
No período que levo para o meu livro havia a comunicação social escrita, com os grandes jornais portugueses, embora tremendamente aperreados pela censura. Não falo muito na Rádio, porque este meio em Portugal tinha pouca expressão, dado o pequeno número de aparelhos e de postos emissores.
“Cauteloso até ao extremo, sensato, lúcido e manhoso”, assim se refere a Salazar na forma como geriu a neutralidade de Portugal durante a II Guerra Mundial. Porquê “manhoso”? Porque soube manobrar entre as duas partes envolvidas no conflito?
Sim. Apesar de não ser propriamente uma figura simpática, não me impede de reconhecer as características positivas da personalidade de Salazar [risos]. Era, de facto, um político dotado de um grande sentido para a coisa política, para a negociação. Era um sagaz observador da personalidade das pessoas. Aliás, os seus vários biógrafos registam isso mesmo. Aquando de um dos seus famosos discursos, Salazar afirmou saber o que queria e para onde ía. Ao longo da guerra Salazar queria manter a neutralidade do regime até ao fim, também porque era o que considerava melhor para o país. Porque o regime teria de sobreviver após a guerra. E essa sobrevivência seria tanto mais potenciada, quanto mais neutral ele fosse. O que não quer dizer que a sua neutralidade não tivesse nuances ao longo do conflito. Em suma, Salazar soube ler os sinais e soube ir navegando sem trair aqueles que eram os seus princípios. Daí o “manhoso”.
A neutralidade de Portugal foi conveniente, mas também foi importante a ação do Estado Novo e de Salazar porque potenciou a neutralidade espanhola.
Disse Saint Exupéry que Portugal era um “paraíso triste”. Neste país cinzento o que procuravam os dois lados do conflito? Volfrâmio, conservas, Açores ou algo mais?
Aliás, o volfrâmio e as conservas foram as duas grandes exportações de Portugal para a Alemanha. Os Açores detinham uma posição estratégica. O arquipélago era uma excelente base a meio do Atlântico. Naquele contexto, esta posição era algo muito importante porque, como se sabe, grande parte dos produtos e dos soldados provenientes da América do Norte para a Europa e também para o Norte da África, faziam-no através do Atlântico. Ora, para os Aliados era importante que houvesse uma base aérea que permitisse o apoio e proteção a esses comboios de navios no seu caminho para a Europa. Portugal tinha para oferecer os dois produtos que já referi, a sua posição estratégica e um outro aspeto interessante que, aliás, já foi tratado pelo cinema e pela literatura. O nosso país era um grande centro de espionagem.
De certa forma, a neutralidade de Portugal foi conveniente aos dois lados do conflito.
Sim, a neutralidade de Portugal foi conveniente, mas também foi importante a ação do Estado Novo e de Salazar porque potenciou a neutralidade espanhola. É algo que também refiro no meu livro. A posição espanhola no conflito é muito mais ambígua do que a nossa. Porque, tecnicamente, a Espanha no princípio da guerra não foi um país neutro, foi um país não beligerante. Ou seja, apoiava um dos lados, o nazi/fascismo o que era natural. Repare, a Guerra Civil de Espanha acaba formalmente a 1 de abril de 1939 e a Segunda Guerra Mundial começa em setembro desse mesmo ano. Franco tinha em mãos um país destruído, com inúmeras carências, mas devia a vitória na Guerra Civil a Hitler e a Mussolini. É aí que Salazar consegue, de algum modo, exercer a influência garantindo a neutralidade espanhola. Claro que se pode perguntar o que é que o exército espanhol poderia fazer esgotado por mais de três anos de guerra. Bem, temos a questão de Gibraltar. Portanto, toda a intervenção espanhola poderia ser no sentido de conquistar Gibraltar e, a partir daí, desencadear uma nova frente, por um lado cerceando o acesso dos Aliados ao Mediterrâneo, por outro lado, isso implicaria também uma intervenção inglesa na Península Ibérica. Era um verdadeiro efeito dominó. Salazar percebeu que a entrada de Franco na Guerra o iria atingir. A famosa Operação Félix alemã implicava a invasão da Península Ibérica com a tomada de Gibraltar com o apoio dos franquistas, com a eventual anexação de Portugal, com o desdobramento da Operação Félix através da Operação Isabella. Portugal tinha um contra plano que consistia em oferecer uma mera resistência simbólica já que exército português era insignificante. O Governo português retiraria para os Açores ao abrigo da proteção inglesa. Isso implicaria a ocupação de Portugal, seria terrível.
E, de facto, o que é que sucede? Sucede que, sobretudo, depois do evidente falhanço da campanha da Rússia, com Moscovo em primeiro lugar e, mais tarde com Estalinegrado, no início de 1943, quer Salazar quer Franco infletem um pouco a sua política. Franco declara-se neutral e Salazar irá, a partir daí, mitigar a sua neutralidade na colaboração com os nazis porque, a partir de Estalinegrado, começa a ser cada vez mais evidente que a Alemanha pode perder a guerra.
Como se explica que um país sujeito aos grilhões da censura, como o era Portugal, conseguiu ser um campo fértil ao desenvolvimento das ideias e das mensagens que iam à boleia da propaganda dos dois lados do conflito, o do Eixo e o dos Aliados?
Na realidade e quem ler este livro perceberá isso, não havia uma acentuada mensagem política nos bastidores da propaganda. Isso, aliás, foram dois imensos condicionalismos dos dois lados. É uma coisa muito interessante. Ao longo de todo o conflito, os Aliados, nomeadamente os ingleses, e a BBC, e a famosa revista Mundo Gráfico foram extremamente cuidadosos nas suas mensagens. Em primeiro lugar, falam de liberdade como uma coisa vaga. Falam da democracia como uma coisa ainda mais vaga. Nunca farão qualquer crítica ao Estado Novo, ao Governo português e a Salazar. Pelo contrário. Os comentários que fazem são simpáticos para não hostilizar o Governo português. Porque qualquer hostilidade para com o Governo português implicaria que seriam silenciados. Basta dizer, por exemplo, que quando se descobriu em Lisboa uma rede de espiões pró-Aliados, pura e simplesmente Salazar fechou a torneira da propaganda da BBC e só a reabriu quando teve, entre aspas, um pedido de desculpas dos Aliados.
Portanto, os Aliados manipulavam essa propaganda com cuidado para não hostilizar o regime. Por exemplo, basta ver que as notícias sobre a Frente Leste, a maior frente da história do conflito, eram muitas vezes publicadas nas páginas mais discretas, sem nunca se referir o exército soviético. Curiosamente, na revista Mundo Gráficoos avanços soviéticos eram sempre referidos como avanços dos Aliados. E do lado alemão havia uma maior liberdade para explanar os seus princípios ideológicos? Sim e não. Os germanófilos portugueses que escreviam na revista A Esfera, que era a contrapartida nazi ao Mundo Gráfico, também revelam muito cuidado. Quem ali escrevia podia explanar à vontade o seu anticomunismo, o seu antiliberalismo, o seu racismo, o seu antissemitismo, a sua mensagem contra a maçonaria e, sobretudo a mensagem de que a democracia é a antecâmara do comunismo. Faziam-no, mas preocupavam-se em nunca ultrapassar Salazar pela direita. Porque, na realidade, Salazar nunca se assumiu como fascista ou como nazi. Obviamente, nazi não era, e fascista é discutível.
No nosso país destacam-se algumas figuras em prol da propaganda de um e do outro lado do conflito?
Sim. Temos algumas figuras do lado Aliado, nomeadamente saídas daquela oposição reviralhista de antigos republicanos da Primeira República, todos aqueles indivíduos ligados à revista Seara Nova, o Jaime Cortesão, o António Sérgio, o Raul Proença. Também encontramos do lado nazi algumas figuras da intelectualidade, mas menores, quer em número, quer em qualidade. Se eu lhe disser, por exemplo, que possivelmente a pessoa intelectualmente mais destacada foi o germanófilo Cabral Moncada, muita gente se interrogará quem era este homem. Foi um grande nome do direito português. Era um homem com um alinhamento mais intelectual do que militante e que, depois, guardou uma prudente reserva. Também encontramos o Alfredo Pimenta, hoje muito pouco conhecido. Um homem de Guimarães que chegou a conservador do Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Era um historiador de segunda linha e um colunista acérrimo. A caneta deste homem era um martelo nas páginas d´A Esfera. Foi um fervoroso germanófilo, pró-nazi, racista, antissemita e que também incensava Salazar. Ainda do lado dos alemães, tínhamos um jornalista famoso na época, o Félix Correia que se destacou nas páginas dos jornais por ter feito uma entrevista a Hitler antes da guerra.
Entre a muita informação que o seu livro nos traz a propósito da propaganda naquele período da guerra, há um aspeto interessante. A rádio portuguesa era um campo de combate entre radialistas sediados em Londres e em Berlim.
Exatamente. Foi um episódio muito curioso. Devo dizer que a investigação que está neste meu livro iniciou-se ainda no século passado, quando comecei a folhear exemplares da revista A Esfera que me foram chegando às mãos. Percebi que estava ali um mundo desconhecido, aquele que se prende à germanofilia portuguesa no período da guerra. Todos aqueles que têm alguns conhecimentos de História, sabem da ligação à inglesa BBC do jornalista Fernando Pessa. De facto, a figura de Fernando Pessa foi basilar na propaganda da BBC para Portugal, com seus altos e baixos. Aliás, ele acabaria substituído por uma outra figura das letras portuguesas, um homem com algum destaque, o António Pedro. Pessa foi afastado da BBC por motivos ridículos. Mas, o mais curioso, e isso para mim foi realmente uma descoberta, é que também tivemos do lado da Rádio Berlim uma secção portuguesa a emitir para o nosso país. Infelizmente, temos muito menos informação sobre a participação destes germanófilos na antena nacional.
O cinema foi pródigo ao serviço da propaganda. Naquele tempo tínhamos uma luta entre a alemã UFA contra a norte-americana Hollywood. Algum deste cinema chegava a Portugal. Quer salientar alguns filmes?
Sim. Na época, o cinema era uma arte muito pouco desenvolvida em Portugal, apesar de termos aquelas décadas de 1930 e 1940 com filmes famosos e, sobretudo, com aqueles extraordinários atores da comédia portuguesa. Mas, temos de ter a noção de que Portugal era um país culturalmente muito debilitado, com um grau de analfabetismo brutal, a rondar os 50% da população. Na época faz-se uma aquisição, digamos, discreta e informal de salas de cinema por parte dos alemães, como o cinema Ginásio, assim como alguns espaços cinematográficos por parte dos Aliados. Estes últimos não tinham tanta necessidade de adquirir espaços próprios para a exibição de filmes porque a produção e a distribuição das películas de Hollywood era esmagadora. Qualquer cinema de bairro exibia filmes norte-americanos. Já os alemães estavam muito mais condicionados, até porque a UFA, a grande produtora cinematográfica alemã, produzia muito menos filmes e também não tinha força para impor a sua exibição em salas portuguesas.
Os quiosques mediam o pulso aos dois lados beligerantes. Quer dar-nos alguns exemplos?
Essa foi uma das grandes surpresas dos refugiados que passaram por Portugal. Estes chegavam a um país onde havia a possibilidade de encontrar, lado a lado, nos quiosques, revistas alemãs e revistas Aliadas. Nós podíamos ter, por exemplo, a revista Newsweek ou a Vogue ao lado da revista Der Adler, por exemplo, que era a publicação da Força Aérea Alemã. Mas, atenção, isto num país onde não havia a liberdade informativa.
A censura era um cutelo que pendia sempre sobre as redações, já que era o próprio Presidente do Conselho de Ministros, Oliveira Salazar, que dava as instruções aos diretores da censura sobre o que se podia ou não escrever.
Tem referido o quadro das revistas portuguesas que pendiam para um e para o outro lado das forças em conflito. Mas, não podemos retirar da equação o papel da censura...
Sim. A censura era um cutelo que pendia sempre sobre as redações, já que era o próprio Presidente do Conselho de Ministros, Oliveira Salazar, que dava as instruções aos diretores da censura sobre o que se podia ou não escrever. Ordens que iam ao pormenor. Por exemplo, não se podia falar sobre os Soviéticos. Outra coisa que era prática nos jornais, e também na rádio, era que toda a informação que vinha das agências noticiosas tinha de ser lida sem contextualização. Por exemplo, o Dia D, com a invasão da Normandia por parte dos Aliados, obrigava a uma leitura sem inflexões, sem comentários, sem observações e sem contexto. Ora, dar uma notícia seca, sem qualquer tipo de contexto, torna-a ininteligível. Sucedia muitas vezes que as pessoas não percebiam o que é que estavam a ouvir. Por exemplo, n’ A Esfera, por má informação ou por má-fé, ou por ambas, as notícias das derrotas alemãs ganhavam contornos de vitórias. Por exemplo, a Batalha de Kursk, em 1943, foi a última grande ofensiva alemã a leste. Os germânicos são derrotados pelos soviéticos e, a partir desse momento, dá-se o recuo constante dos alemães até Berlim. Ora, essa batalha é apresentada n’ A Esfera como uma vitória alemã.
Na sua pesquisa para o livro deparou-se com muito material gráfico ainda por estudar?
Sim. Um dos aspetos que me surpreendeu é algum desse material continuar praticamente inédito quanto a publicação posterior. O caso d’ A Esfera que, como referi foi o grande órgão de informação da propaganda alemã, é uma revista praticamente desconhecida e é um maná de informações. Espero ter contribuído com este meu livro para abrir um pouco os horizontes face ao período que abordo.
Está a trabalhar num novo livro?
Como sabe, sou autor de uma coleção de títulos sobre a história de Lisboa. Temos a Lisboa Nazi, a Lisboa Judaica, a Lisboa Árabe, a Lisboa Maldita, a Lisboa Africana. Neste momento estou a escrever o sexto volume desta coleção que irá sair nos primeiros meses de 2025. Aqui entre nós, que ninguém nos ouça, posso dizer que será a Lisboa Maçónica.
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