
Vivemos num tempo em que ser pai ou mãe implica lidar com expectativas elevadas e muitas vezes contraditórias. A parentalidade é atravessada por ideais de perfeição, comparações constantes e modelos opostos que circulam no espaço público: de um lado, discursos que exigem crianças dóceis e obedientes; do outro, a ilusão de uma autonomia precoce.
No meio destes extremos, os pais sentem-se frequentemente confusos. A clínica mostra que a parentalidade não é gratificante na maior parte do tempo — e isso não significa que esteja a correr mal. Pelo contrário: “a maior parte do tempo é, possivelmente, difícil. Isso não quer dizer que estejam a fazer um mau trabalho como pais”, sublinha Catarina Perpétuo na presente entrevista.
Psicóloga clínica e investigadora na área do desenvolvimento, Catarina Perpétuo tem trabalhado com crianças, adolescentes e adultos, e parte dessa experiência para defender uma visão mais realista e ao mesmo tempo mais compassiva da parentalidade.
É desse olhar que nasce Filhos, Haja Quem os Entenda! (edição Contraponto), livro ao qual a autora não quis imprimir soluções rápidas, antes um convite a refletir sobre as dificuldades quotidianas — desde o sono às birras, da autoestima às relações com os pares — e a reconhecê-las como parte integrante do crescimento.
Atravessamos um tempo em que a parentalidade é alvo constante de debates, expectativas e comparações. O que é que, em seu entender, mais confunde hoje os pais?
As histórias, os filmes, as canções, as crenças e tudo o mais que compõe o imaginário coletivo acerca da parentalidade parece veicular dois equívocos. Primeiro, a parentalidade e o amor entre pais e filhos, tendo os seus desafios, é gratificante na maior parte do tempo. Segundo: se não for gratificante na maior parte do tempo, é porque as coisas não estão a correr bem.
Ora, o que a clínica, a investigação e a própria vida vão mostrando é que nem a parentalidade é gratificante na maior parte do tempo, nem isso significa que as coisas não estejam a correr bem. Ser mãe ou pai é ter medo de errar, é errar uma e outra vez, é sofrer e também fazer as pazes com isso. Estes medos, angústias, culpabilidades e ansiedades inerentes à parentalidade fazem com que seja impossível estar feliz, sentir-se a amar e a ser amado na maior parte do tempo. A maior parte do tempo é, possivelmente, difícil. Isso não quer dizer que estejam a fazer um mau trabalho como pais.
No entanto, o ser humano parece ter um desejo muito grande de eliminar esse tipo de sentimento da sua experiência e esse desejo é o combustível que alimenta muitos dos discursos que circulam nos debates sociais.
Com a presença do digital e das redes sociais na vida atual, disseminam-se perspetivas sobre a parentalidade que podem encaixar em dois modelos opostos. Por um lado, aqueles que privilegiam a assimetria criança-adulto e a necessidade do adulto se fazer respeitar por uma criança que se pretende dócil e que acate as diretivas dos mais velhos. Por outro, aparecem discursos que aparentemente privilegiam a criança, as suas expressões, decisões e vontades, mas que a deixam "à solta" num mundo de possibilidades assoberbante, como se ela fosse madura e autónoma o suficiente para decidir, por exemplo, os horários e as rotinas.
Estes discursos surgem também equivocados, uma vez que nem a criança é dócil e submissa, nem madura e autónoma o suficiente; a criança não é nem faz como os adultos querem. Aliás, por que haveria de fazer? Por que queremos que ela faça? Porque isso é importante para o seu desenvolvimento ou porque a nossa afirmação enquanto adultos depende disso?. Por essa razão, é aproximar os pais de como funcionam a cabeça e o mundo afetivo da criança, mais do que oferecer-lhes uma "caixa de ferramentas" genéricas para tornar a parentalidade gratificante e sem conflitos, coisa que não é possível.
O que a clínica, a investigação e a própria vida vão mostrando é que nem a parentalidade é gratificante na maior parte do tempo, nem isso significa que as coisas não estejam a correr bem.
Não raro ficamos com a ideia de que a sociedade — e aqui incluo as redes sociais e as imagens e conteúdos que estas nos oferecem — exige que as famílias sejam perfeitas. Na sua prática clínica depreende que esse ideal irrealista pesa no quotidiano de quem educa uma criança/jovem?
Para muitos pais os ideais pesam terrivelmente na sua experiência da parentalidade. No entanto, parece-nos que as imagens e conteúdos alusivos à parentalidade nas redes sociais têm muito pouca importância na formação desses ideais. As pessoas constroem os seus ideais de parentalidade com base na sua história subjetiva, nas suas experiências familiares enquanto filho ou filha, nas infinitas observações que fazem ao longo dos primeiros anos de vida, e na forma como se vêem a si próprios.
É esse leque vasto de conteúdos que forma as ideias sobre "como gostava que a minha família fosse", com base naquilo que imaginam que são as famílias de amigos e família alargada. Os conteúdos veiculados nas redes sociais só "dão cara" a um ideal que já existe internamente. A confrontação da experiência real com os ideais que produz a frustração, a sensação de falha, a zanga e o "não saber o que fazer" nos pais, particularmente naqueles para quem os ideais são mais importantes na forma como se vêem.
Ao se lançar na escrita do livro Filhos, Haja Quem os Entenda! qual foi o seu primeiro objetivo: oferecer ferramentas aos pais, trazer-lhes conforto ou abrir espaço para uma reflexão social? Ou a soma de todos estes objetivos, e outros mais...
O meu objetivo ao escrever este livro foi, desde o início, colocar as peças — as possíveis — do jogo — da parentalidade — em cima da mesa e oferecer elementos para uma reflexão apoiada e profunda sobre questões ligadas à parentalidade. Como é um jogo que pode ser jogado de tantas maneiras, não acredito que possa ter um livro de instruções que forneça ferramentas, numa lógica de causa-efeito. Essas ferramentas, que circulam nos discursos da Psicologia corrente só se podem traduzir em mudanças se o seu sentido for apropriado, compreendido e integrado. Assim, o que sempre pretendo é auxiliar os pais a abrir vias de reflexão e questionamento, num espaço interno de criatividade para compreender a criança, e perceber quando é altura de procurar ajuda profissional.
O meu objetivo ao escrever este livro foi, desde o início, colocar as peças — as possíveis — do jogo — da parentalidade — em cima da mesa e oferecer elementos para uma reflexão apoiada e profunda.
O título do livro carrega uma certa dose de humor, mas também a afirmação de algum desespero, sem que lhe falte o ponto de exclamação. Ao escolher este título, estava apenas a nomear uma dificuldade universal ou também a provocar os leitores a olharem para a parentalidade de forma menos idealizada?
O título na verdade foi uma produção conjunta entre mim e a equipa de edição. Foi a última coisa a ficar pronta, tirando a capa. É bastante difícil formular um título descritivo do conteúdo do livro e ao mesmo tempo apelativo e "bem-disposto", mas parece-me que conseguimos isso.
O humor ajuda a criar um ambiente interno de descontração no leitor, que concorda com a tonalidade geral do livro. Descontrair para depois informar e refletir, mantendo sempre o acolhimento da experiência dos pais, transmitindo a ideia de que "não estão sozinhos". O recurso ao verbo "entender" anuncia a tónica e o objetivo do livro, numa proposta de pensar em conjunto sobre as nossas ideias, e também ideais, ligados à parentalidade. A ideia da "provocação" benigna - a que estimula o pensamento, numa atmosfera afetuosa - está sem dúvida presente ao longo dos capítulos.
O livro recusa fórmulas mágicas e aproxima-se mais de uma bússola do que de um manual. Num mercado editorial onde proliferam receitas rápidas para “resolver” a parentalidade, o seu livro propõe tempo, complexidade e dúvidas. Que responsabilidade sentiu ao assumir esse tom mais exigente, mas também mais honesto?
Para mim, subjetivamente, não seria possível ter escrito o livro de outro modo que não assente na exigência e na honestidade; existe uma continuidade e uma coerência na minha identidade académica, científica, clínica e até pessoal que se apoia nesses dois vetores e isso sempre foi muito claro. Claro que as propostas de tempo, complexidade e formulação de dúvidas entram em conflito com as expectativas de muitos pais quando compram um livro deste tipo: no "desespero", não querem ou não conseguem pensar, querem um livro (alguém) que lhes pegue ao colo, como uma boa mãe, e resolva o problema rapidamente. É isso que muitos pais querem, mas será que é disso mesmo que precisam? Não devemos confundir necessidade com desejo. Os pais podem desejar soluções rápidas, mas necessitar verdadeiramente de compreensão e tempo.
Além disso, tirando alguns casos, parece-me também que as pessoas já estão cansadas desta "fúria editorial" regida por uma lógica de resolver-acelerar-fazer-uniformizar. Perante as suas falhas e limitações, parece-me que estamos no tempo certo para propor algo diferente, assente nas lógicas de questionar-abrandar-apreciar-criar-transformar.
A nossa responsabilidade social e profissional, enquanto clínicos, assim o determina. Devemos ajudar os pais a ajustar as expectativas idealizadas, e disso faz parte assumir que não há um livro que "resolva" a parentalidade; que não há atalhos; que a psicoterapia não traz resultados rápidos; mas também que os pais não são tão maus pais quanto às vezes pensam. À primeira vista pode até não parecer, mas reconhecer e assumir isto tem um efeito tranquilizador e fertiliza as vias de pensamento.
Ao abordar temas delicados como a raiva, o ciúme ou a destrutividade, procurou normalizar sentimentos difíceis. Porque é tão importante que os pais aprendam a conviver com estas emoções, em vez de as tentar apagar?
A metáfora que utilizamos no livro propõe que se pense nessas "emoções" como um monstro terrível, esfomeado e furioso, que se fecha numa cave às escuras. No primeiro andar, talvez não o possamos ouvir e talvez o consigamos ignorar, mas a sua fome e a sua fúria vão aumentando, ele ruge, arranha as paredes da sua prisão e faz estremecer as paredes da casa. Tentar apagá-las não significa que elas desapareçam; pelo contrário, elas não desaparecem e vão-se tornando cada vez mais poderosas e encontrando maneiras disfarçadas de escapar, para poderem ver a luz do dia. Assim, por vezes transformam-se em comportamentos de retaliação zangados, ou em hiperproteção para que nada de mal aconteça à criança, ou até numa baixa autoestima dos pais. Os disfarces são infinitos, mas o sofrimento que causam está sempre presente. Tentar "apagar" coisas que vêm no nosso equipamento humano de base nunca dá bom resultado; todos esses afetos e emoções devem poder circular, e entrar em contacto com eles, nas asas de um livro ou no consultório de um psicólogo ou psicanalista, vai permitindo essa circulação.
O processo de socialização de uma criança envolve sempre que ela aprenda a renunciar à vontade de satisfazer os seus impulsos.
O castigo faz parte do processo de educação de uma criança?
Há um dado que é incontornável: o processo de socialização de uma criança envolve sempre que ela aprenda a renunciar à vontade de satisfazer os seus impulsos; se todas as pessoas fizessem tudo o que lhes apetece quando lhes apetece, provavelmente o mundo já teria acabado. Só que isto é difícil porque a criança não tem incentivos próprios para renunciar ou adiar as suas vontades; todas as células do seu corpo querem satisfazê-las. A capacidade de esperar ou de desistir de uma vontade não vem com o tempo e com a maturidade, ao contrário do que se pensa, mas vem através dos adultos. A única coisa capaz de competir, e vencer, a vontade de satisfazer os impulsos infantis, é o amor dos adultos. A criança começa a ser capaz de abrir mão de certos prazeres quando sente que, se não o fizer, os pais ficam zangados com ela. Assim, muitas vezes uma repreensão verbal é suficiente.
Sabendo disto, julgamos importante que os adultos reflitam sobre o que significa castigar, e não estamos a falar do significado formal [privar temporariamente a criança de um privilégio]. Estamos a falar do que significa para o adulto castigar: é uma forma de retaliação ("como não fizeste o que eu queria, agora não podes fazer o que queres")? É uma forma de fazer cumprir o seu papel parental ("os pais castigam, as crianças têm de ser castigadas")? É uma forma de fazer com que a criança se comporte como o adulto quer? Ou é criar uma possibilidade para que a criança lide com as consequências do seu comportamento e conserte o mal que foi feito (e.g., sujou - ajuda a limpar; teve má nota - estuda mais; magoou um amigo - pede desculpa).

Refere amiúde a ideia de que os pais carregam consigo a sua própria história. O que acontece quando esse passado não trabalhado se encontra com as exigências da parentalidade?
Dependerá muito do passado em si, do modo como as figuras familiares e o próprio se posicionavam uns em relação aos outros, das alianças que formavam, dos conflitos que as desconsertavam e da maneira como as conciliações eram alcançadas. Uma coisa é certa: nós temos tendência a reencenar a nossa história passada: é como se repetíssemos uma peça de teatro com os mesmos papéis, com personagens um bocadinho — mas não muito! — diferentes e com atores, esses sim, completamente diferentes. Uma família-peça de teatro com papéis como "mãe imprevisível", "pai agressivo", "irmão competitivo" e "avó afetuosa" pode transformar-se, na fase adulta, na mesma peça, mas onde atores diferentes assumem os mesmos papéis, como: "chefe imprevisível"; "marido agressivo"; "amiga competitiva"; "colega afetuosa". Quando se é pai/mãe, o bebé entra nesta trama de personagens e posicionamentos.
Quem teve uma mãe imprevisível pode, talvez, tornar-se num adulto com dificuldades em suportar a dependência ou a autonomia crescente da criança (os opostos andam sempre de mão dada); quem teve um pai agressivo pode, talvez, tornar-se num adulto para quem respeitar as regras seja muito importante ou que tenha muita dificuldade em colocar regras; quem sente que teve de crescer muito rápido pode, talvez, tornar-se num adulto que põe sempre o filho em primeiro plano, esquecendo-se das próprias necessidades, ou num adulto que raramente é capaz de pôr o filho em primeiro plano. O passado faz parte da história de todos os adultos. Aqueles que tiverem uma curiosidade mais aguçada para o redescobrir ou aqueles para quem a parentalidade trouxer sentimentos e angústias muito difíceis de suportar, deverão procurar ajuda profissional.
Mesmo sendo adultos, e pais, transportamos a criança que fomos e os pais que tivemos, e pensar sobre eles é fundamental para que possamos abraçar a parentalidade.
Já terá recebido muitos ecos de leitores. Houve alguma reação em particular que a tenha surpreendido, talvez por revelar uma leitura diferente daquilo que imaginava?
Os primeiros ventos têm trazido ecos muito bons que me deixam satisfeita. Houve dois, particularmente, que me surpreenderam. O primeiro revelava, ele próprio, uma surpresa pela complexidade da vida emocional do bebé e da criança pequena; a ideia de que as coisas se complexificam mais na adolescência está muito presente. Acredito que nós, que dedicamos toda a vida académica e profissional a estudar bebés e crianças pequenas, mesmo na clínica com adultos, já nos tenhamos "esquecido" de como era pensar num bebé-criança mais ou menos passivo, que se vai complexificando até se tornar adulto. O segundo foi de várias pessoas que, de modos diferentes, me têm vindo a transmitir que, sendo adultos, esperavam ter-se identificado com os adultos durante a leitura e os exemplos apresentados. Só que, pelo contrário, identificaram-se mais com a criança e colocaram os próprios pais no lugar de adultos. Este "eco" faz-me sentir que a mensagem principal está a ser transmitida: mesmo sendo adultos, e pais, transportamos a criança que fomos e os pais que tivemos, e pensar sobre eles é fundamental para que possamos abraçar a parentalidade de forma mais completa, justa, equilibrada. Isto, no sentido de equilíbrio de forças internas, não propriamente de "saúde" mental.
Finalmente, se tivesse de identificar um único tema que ainda falta discutir de forma aberta e corajosa sobre infância e parentalidade, qual seria?
Ocorrem-me dois temas, que enuncio brevemente. Não são temas recentes na literatura "psi", mas são efetivamente pouco pensados, e menos ainda discutidos, nos debates acerca da parentalidade com um público mais geral. O primeiro remete para as questões da zanga e da agressividade nas relações entre pais e filhos. No livro são afloradas estas questões, mais na perspetiva da criança que se desenvolve num mundo de adultos minimamente "preparado" para ela. Pensar a zanga e a agressividade dos adultos em relação às crianças é mais difícil, angustiante, "contra natura" e menos aceitável, porque colide com a imagem ideal de pais benevolentes e afetuosos que guardamos e que lutamos por manter. Não me refiro a pensar na zanga e na agressividade nos casos limite que levam muitas vezes à retirada das crianças aos pais; refiro-me à presença desses afetos em pais "normais", "saudáveis" e bons. Porém, não sei ao certo se já estamos preparados como sociedade para enfrentar esse debate. Em psicoterapia, num contexto específico, fazemos isso inevitavelmente, mas no mundo "cá fora" é um debate difícil porque ameaça as nossas idealizações e a forma como nos vemos.
O segundo liga-se com o anterior e diz respeito a esta ideia disseminada que temos de que as crianças devem ser empáticas, gratas, dóceis, de que as famílias têm de ser felizes e perfeitas, e de que os adultos têm de ser "bem resolvidos". Por mais voltas que dê à cabeça, nunca entendo muito bem o que isso de "bem resolvido" quer dizer... Talvez seja um debate que possa começar por essa questão, seguindo-se ainda outra pergunta: "Porque é que pensamos que temos de estar sempre bem?".
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