
Uma jovem desaparecida, um ex-namorado obcecado, um cadáver que pode ser o da protagonista da história. É no cruzamento entre amor, luto e perturbação mental que se desenha Amor e Obsessão, livro assinado por Élvio Carvalho e editado com a chancela Clube do Autor. Élvio inscreve a sua mais recente obra no género thriller psicológico, numa narrativa que abordar uma inquietante realidade: o tráfico de seres humanos.
Inspirado numa reportagem sobre redes de exploração sexual na Europa, o autor constrói uma narrativa que não se limita à denúncia social. Ao longo do livro, confrontam-se questões como a fragilidade emocional, a perceção distorcida da realidade, a memória e o trauma. O leitor é desafiado a perceber o que é verdade e o que pode ser apenas fruto da mente de uma personagem em desequilíbrio — ou talvez não.
A história arranca com o desaparecimento de Eliana, forçada à prostituição durante mais de três anos numa rede de tráfico internacional. Quando um corpo aparece, o seu antigo namorado, Henrique, é o único a afirmar saber a verdade. Garante que o cadáver é o dela e que os culpados são os traficantes. A polícia, porém, vê nele o principal suspeito. A linha entre vítima e culpado torna-se cada vez mais difusa.
Natural da Erada, freguesia serrana do concelho da Covilhã, Élvio Carvalho nasceu em 1990 e tem um percurso profissional ligado ao jornalismo. Licenciado em Ciências da Comunicação e mestre em Jornalismo pela Universidade da Beira Interior, passou mais de uma década nas redações da TVI, TVI24 e CNN Portugal, onde foi também coordenador de noticiários. Atualmente, está a realizar doutoramento na mesma área.
A escrita, no entanto, acompanhou-o desde a infância — primeiro em contos e bandas desenhadas, depois em projetos que ficaram por concluir. Só mais tarde, já com experiência profissional consolidada, decidiu dar corpo ao primeiro romance. A escolha do género não é inocente: o thriller, com a sua tensão narrativa e exigência estrutural, serve aqui tanto como ferramenta de entretenimento como de questionamento social.
O Élvio define-se como alguém que “gosta de inventar histórias para livros que nunca tinham saído da gaveta”. Antes de nos determos no escritor e no presente livro, gostaria de o compreender enquanto leitor. Que géneros o cativam? Diria que se apaixona mais depressa por um enredo do que por um escritor ou a sua escrita?
Sim, exatamente, porque tenho alguma dificuldade em identificar autores preferidos ou influências e explico-lhe porquê: há autores de quem gosto muito, dos quais só li um livro. Porque, neste caso, gosto especialmente da história. Se gostar muito de um livro, provavelmente vou procurar outra obra desse autor, embora nem sempre assim seja. Apaixona-me muito mais uma boa história do que um grande nome das letras ou mesmo acompanhar um livro porque toda a gente o está a ler ou porque é assinado pelo autor do momento.
Escrevo desde muito novo, praticamente desde o final do primeiro ciclo. O primeiro conto, se lhe podemos chamar assim, porque era muito curto, com algumas ilustrações.
O Élvio é jornalista, logo segue um código deontológico, é rigoroso, factual. Vê a ficção como um exercício de libertação em relação àquela que exerce na sua dimensão profissional?
Sim. Durante muitos anos escrevi notícias, nomeadamente para televisão. A escrita de ficção acaba por ser um bom escape à realidade. E também serve, por vezes, para aproveitar histórias reais e dar-lhes outros contornos, ou até mesmo inspirar-me nelas para criar outras histórias. No caso deste livro, Amor e Obsessão, a ideia original surgiu a partir de uma reportagem sobre tráfico humano na Europa. Embora esta ideia inicial tenha acabado por se tornar apenas o primeiro capítulo da obra, a narrativa partiu daí. Mas, também é verdade que já escrevia antes de ser jornalista.
Aliás, o Élvio referiu numa entrevista anterior que sempre gostou de inventar histórias para livros que nunca chegaram a sair da gaveta.
Exato. Escrevo desde muito novo, praticamente desde o final do primeiro ciclo. O primeiro conto, se lhe podemos chamar assim, porque era muito curto, com algumas ilustrações, data de 1998 [risos]. Teria uns sete ou oito anos e também fazia bandas desenhadas. Por vezes, criava histórias alternativas para personagens de séries de animação como o Dragon Ball. Depois, claro, fui evoluindo. Na adolescência comecei a tentar escrever contos mais a sério e, mais tarde, já na universidade, tentei escrever o primeiro livro. Mas, esse acabou por ficar para trás, nunca passou do terceiro capítulo [risos]. Só mais tarde, já na vida profissional, é que tentei ativamente escrever um romance — e consegui.
E o que sente quando reencontra esses textos da sua infância e adolescência?
Alguns dão-me uma certa vergonha alheia, pois são escritos muito ingénuos. Mas, ao mesmo tempo, sinto algum orgulho, porque é algo que se manifestou desde muito novo. Na vida, temos muitas vezes hábitos que duram algum tempo e depois desaparecem. Há pessoas que jogam futebol em miúdos e não prosseguem com essa atividade numa idade mais madura. No caso da escrita, esta esteve sempre comigo. Muitas vezes tenho dificuldade em explicar de onde vêm certas ideias. Por vezes, estou a conduzir e surge-me uma ideia — uma parte de uma história, uma continuação, um diálogo. Já aconteceu ter de parar o carro para escrever no telemóvel [risos].
Em mim, a escrita não é uma atividade linear. Há escritores que se sentam todos os dias das nove às cinco e escrevem, escrevem, escrevem. Não sou assim.
Escolhe para este seu livro o género Thriller. Gere o suspense ao longo de toda a obra o que, presumo, o obrigou a um exercício prévio esquemático do livro. Como se classifica enquanto escritor?
Em mim, a escrita não é uma atividade linear. Há escritores que se sentam todos os dias das nove às cinco e escrevem, escrevem, escrevem. Não sou assim. Escrevo quando me surge o impulso para o fazer. E, se estiver a escrever e o ato da escrita não estiver a fluir, paro, não forço. Tanto posso escrever três ou quatro páginas de uma vez, como apagar uma página inteira porque não está a sair como gostaria. É uma atividade muito intuitiva.
Por norma, quando tenho uma ideia para um livro, parto de um princípio e de um final. O desenrolar da trama vai-se modificando, vai crescendo, às vezes até por caminhos inesperados. No caso de Amor e Obsessão, como referi há pouco, a história original acabou por ser apenas o primeiro capítulo. A questão do tráfico humano está muito presente nesse início e, originalmente, este marcaria toda a história. No fundo, o fim do primeiro capítulo correspondia ao que eu imaginava ser o final do livro. Mas, depois fui alterando, desenvolvendo mais a história, acrescentando detalhes. Quanto à estrutura, sim, precisei de fazer esquemas. Tinha páginas escritas à mão rasuradas com setas, chavetas, parênteses, para não me perder.
E chegou a perder-se?
[Risos]. Sim, por exemplo, reparei a certa altura que tinha um personagem que, num capítulo, estava de camisa e, no seguinte, estava de t-shirt. Isto, sem que tivesse descrito que a personagem tinha mudado de roupa. A história vai-se reformulando, mas, julgo, o resultado final ficou coeso.

Junta no mesmo título as palavras “amor” e “obsessão”. São duas palavras fortes e intensas. De que forma se conjugam com o enredo que traz para este seu livro? No fundo, estou a convidá-lo a, brevemente, nos apresentar o seu livro.
São, de facto, dois sentimentos muito presentes nas duas personagens principais. Existe um sentimento de amor — até bastante puro, mas talvez não no melhor sentido — algo cru, com tudo o que isso acarreta. Ao mesmo tempo, há obsessão. Esse amor transforma-se numa outra coisa, numa espécie de possessividade e, com ela, vêm outros sentimentos menos nobres, como o ciúme, o egoísmo, a manipulação. E tudo isso acaba por afetar quem está em torno.
Neste contexto, o tráfico humano é um tema forte que traz para o seu livro.
Sim, é um tema forte, mas o livro é mais do que isso. Não se trata apenas de uma rapariga raptada, maltratada e forçada à prostituição. A história toca também na questão da saúde mental, em relações que se podem considerar tóxicas, e nas consequências que daí advêm.
Quando escrevo, tento visualizar cada diálogo como se estivesse a acontecer num ecrã, quase como uma cena de televisão.
Quais foram os principais desafios ao escrever sobre estas questões?
Tentar imaginar os sentimentos das personagens foi talvez o mais difícil. Quando escrevo, tento visualizar cada diálogo como se estivesse a acontecer num ecrã, quase como uma cena de televisão. E, por vezes, é complicado colocar-me na posição de certas personagens: o que é que sentiriam ao viver determinada situação? Como é que reagiriam? Há personagens muito distintas neste livro. Por vezes, chegava a um ponto da escrita e percebia que aquele diálogo não batia certo com a personalidade da personagem. E, então, tinha de voltar atrás. Em termos de cenários, foi mais simples. Inspirei-me em lugares reais. Grande parte da história passa-se na Covilhã. Quem conhecer aquela zona, vai reconhecer os locais — o que também me poupou a descrições exaustivas. O mais difícil foi garantir a coerência emocional e psicológica de cada personagem.
Até que ponto a ficção é um espaço seguro para dissecar o que a realidade social esconde de mais sombrio? É um território favorável a estes alertas por, potencialmente, chegar ao leitor sem o peso da figura do jornalismo?
Sim, sem dúvida. Por exemplo, no caso do tráfico humano, temos tendência a pensar que é algo que acontece noutras geografias, como a América do Sul ou em alguns países de África. Não temos tanta noção de que também acontece na Europa, bem perto de nós. E pode ser um bom alerta para mostrar que não é um problema distante. Em relação à saúde mental e às relações, considero-os temas universais. Mesmo que não estejam nas notícias, aparecem nas redes sociais, em conversas familiares. E podem, e devem, ser debatidos. Embora acredite que nem todos os livros tenham de ter uma mensagem, gosto de pensar que este pode contribuir para essa reflexão.
Há um momento em que a Eliana é maltratada e violentada. Custou-me muito descrever este ato. De certa forma, tive de me colocar na pele do agressor, imaginar como é que alguém seria capaz de fazer aquilo.
Nesse sentido, a literatura deve provocar desconforto?
Sim. No caso deste meu livro, principalmente no primeiro capítulo, que é o mais cru e mais violento. Há um momento em que a Eliana é maltratada e violentada. Custou-me muito descrever este ato. De certa forma, tive de me colocar na pele do agressor, imaginar como é que alguém seria capaz de fazer aquilo. Foi muito difícil. Cheguei a questionar-me se devia escrever daquela forma ou optar por uma abordagem mais sugerida, deixar à imaginação do leitor. Mas, optei por descrever de forma crua, porque queria transmitir a violência da situação. Foi um momento duro, sem dúvida.
Há uma clara intenção de explorar os limites da sanidade e da perceção. Trabalhou com psicólogos ou psiquiatras na fase de pesquisa?
Não consultei especialistas diretamente, mas fiz muita pesquisa. Queria perceber os limites da saúde mental, os diferentes tipos de perturbações, para que tudo fosse credível.
Não queria criar uma história inverosímil. Também fiz pesquisa sobre o tráfico humano: assisti a reportagens, estudei casos, rotas usadas, meios de transporte — para perceber como seria possível montar uma história com base na realidade. Enquanto jornalista, preocupo-me em ser fiel ao real. Acho que, quando um leitor sente que “isto não podia acontecer”, perde-se o impacto da história.
Durante esse processo, criou alguma ligação mais enfática com alguma das personagens?
Sim, o Henrique, que é uma das personagens principais, se não a principal. No início, tinha por ele uma certa pena, sentia que era injustiçado. Mas, à medida que fui construindo a história da relação dele com a Eliana, percebi que havia mais ali. Ele próprio revê o passado e percebe que não foi tão bom quanto pensava. Isso provocou em mim o afastamento emocional com a personagem. Mas, no final, acho que fiz as pazes com o Henrique. Porque esta toma uma decisão importante que o redime, especialmente em relação a outra personagem, a sua companheira.
É um escritor que regressa aos livros depois de publicados com o sentimento de que os mudaria?
Cito o vocalista de uma banda que muito aprecio e que dizia que não gostava de ouvir as suas músicas depois de lançadas. Sou igual com os livros [risos]. Não gosto de voltar a ler o que escrevi, porque acabaria por querer mudar coisas. Este livro, por exemplo, apesar de ser uma nova versão do que saiu em 2019 [Eliana - História de uma Obsessão] é uma obra completamente diferente. Convido quem leu Eliana na época a ler agora Amor e Obsessão. Não se trata apenas de uma mudança de título. A história é a mesma na essência, mas os diálogos são diferentes, há novos elementos. Há, por exemplo, uma parte de investigação criminal que antes não existia. E, sinceramente, há frases da versão anterior que me causam embaraço. Pergunto-me: “como é que escrevi isto?” Por isso, prefiro não voltar atrás.
Por falar em seguir em frente, está a trabalhar num novo livro?
Sim, já tenho outro livro pronto. Calhando, até gosto mais deste novo livro. É diferente. Não o considero um thriller, pelo menos não no sentido clássico, com crime e investigação. Tem uma componente psicológica forte e suspense, mas é uma coisa diferente. Acho que os leitores vão gostar de ver essa outra faceta minha.
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