“Não sei verdadeiramente quem sou. Não sei verdadeiramente o que sou. Não sei verdadeiramente o que sinto. Estou cansada de chorar. Estou cansada de gritar. Estou cansada de estar triste. Estou cansada de fingir. Estou cansada de me sentir sozinha. Estou cansada de estar zangada. Estou cansada de me sentir “presa”. Estou cansada de precisar de ajuda. Estou cansada de recordar. Estou cansada de sentir falta de coisas. Estou cansada de ser diferente. Estou cansada de sentir falta das pessoas. Estou cansada de me sentir sem valor. Estou cansada de sentir um vazio cá dentro. Estou cansada de não ser capaz de “deixar ir...”. Estou cansada de desejar começar tudo de novo. Estou cansada de sonhar com uma vida que nunca terei. MAS acima de tudo, estou cansada de estar SEMPRE CANSADA!” (adolescente 16 a)
A adolescência foi durante muito tempo um período “tolerado” pelos pais mas pouco compreendido, sendo frequente o adolescente ser descrito como temperamental, impulsivo e exasperante. É um período que se pauta pela instabilidade física e emocional em parte pela mudança rápida de humor e de emoções. O seu novo papel na sociedade traz consigo um comportamento de questionar os valores e todas as modificações de que o jovem é alvo (físicas, cognitivas e emocionais) conduzem a uma predisposição a novas experiências e a um testar de atitudes e limites que poderão em última instância colocar a sua vida em risco. A adolescência encerra assim em si mesma novos desafios ao seu entendimento.
Apesar do consenso geral de que as Perturbações da Personalidade do tipo Bordline (PPB) têm as suas raízes na infância e na adolescência, diagnosticar uma perturbação da personalidade antes dos 18 anos tem sido imensamente polémico, permanecendo em muitos cenários clínicos (e científicos ) a resistência e hesitação de se proceder a um diagnóstico em idades precoces. Em parte, pelo facto da instabilidade emocional e as dúvidas permanentes quanto à autoimagem, traços cardinais das PP Bordeline serem tarefas normativas na adolescência.
Por outro, por se considerar que a personalidade é um constructo em evolução e não faria sentido um diagnóstico nestas idades. E, por último, pelo receio da conotação negativa que o diagnóstico encerra. Todavia, a investigação tem permitido perceber no que respeita ao ciclo de vida desta perturbação, existir uma validade e fiabilidade deste diagnóstico na adolescência e consequentemente a urgência de um tratamento especializado e adequado desde cedo. Acrescente-se que deveremos falar num continuum de sinais, ou dimensões de PPB, por oposição a “tem ou não tem uma PP Bordeline por preencher um conjunto de critérios!”. Torna-se assim mais fácil o entendimento de um funcionamento de personalidade bordeline na adolescência, ou de “estar a caminho da perturbação”.
A que sinais devo estar atento?
A PPBordeline é caracterizada por uma instabilidade emocional intensa com reacções emocionais excessivas, extremas e frequentemente inapropriadas, impulsividade comportamental elevada e uma história de vida atribulada subjacente a relacionamentos sucessivos de grande instabilidade.
Entenda-se assim que o jovem com um funcionamento Bordeline apresenta marcada dificuldade em regular as emoções (Negativas) em particular a raiva, oscilando rapidamente entre estados de calma e raiva/zanga ou tristeza. De salientar que é um jovem que vivencia as emoções mais intensamente que os pares, podendo tornar-se violento verbal e fisicamente, emoções (e.g. a raiva) essas muitas vezes direcionadas aos pais, namorado/a ou melhor amigo/a e é frequente após a explosão sentirem vergonha e culpa.
Neste seguimento são comuns os sentimentos de inadequação, de não serem entendidos pelos pais, família e nem mesmo pelos pares... e sentirem-se sem controlo sobre as emoções…ou mesmo avassalados pelas mesmas! Ao contrário e muitas vezes em simultâneo a este turbilhão emocional é frequente um profundo sentimento de vazio (permanente e não vai e vem como a tristeza), difícil de preencher, ou mesmo impossível de preencher com namoros, amizades, trabalho, drogas, sexo.....provocando uma enorme angústia!
São jovens que ruminam excessivamente sobre situações sociais, não conseguindo muitas vezes desligarem-se do que aconteceu e tornam-se hipervigilantes e sensíveis a todas as pistas socias, em particular a qualquer sinal indicador de possível abandono ou rejeição do outro. O “mote” muitas vezes das suas atitudes!
O Medo de abandono é sem dúvida um dos aspetos mais marcantes da PPBordeline. É frequente sentirem-se em pânico ou furiosos quando o amigo/namorado está minutos atrasado ou porque não responde de imediato às suas mensagens ou telefonemas, “pensando que o vão abandonar”, à luz da crença de que “não prestam e não têm valor!”. Adotam dessa forma frequentemente comportamentos para garantir e assegurar que não serão abandonados, e.g. telefonar a horas estranhas, enviar constantemente sms para garantir que gostam de si, que a relação está bem….agarrar-se fisicamente ao outro quando deseja/mostra querer ir embora!....
Como forma de regular a dor da possível perda/rejeição ou da raiva decorrente da zanga/desilusão ou mesmo para manter a relação amorosa recorrerem muitas vezes a comportamentos impulsivos marcados.
O vazio, as emoções intensas e a angústia têm de ser preenchidas de alguma forma e por isso não se estranha:
- Uma vulnerabilidade maior para álcool e drogas ilícitas;
- Promiscuidade e comportamentos de risco sexuais;
- Auto-mutilações;
- Bulimia e alterações do comportamento alimentar;
- Comportamentos sociais com actos de grande teatralidade e apelativos;
- Múltiplas tentativas de suicídio;
- Morte precoce.
São muitas vezes lidos como comportamentos manipulatórios, verdadeiras chamadas de atenção..... Não devemos no entanto esquecer que o adolescente que se magoa, por cortes, consumo álcool, ou restrições alimentares graves.... “fá-lo porque não sabe ou não está a conseguir expressar e lidar com a sua dor de um modo mais eficaz”. Não podemos deixar de referir que muitas vezes “pela certeza de será rejeitado” pelo pobre autoconceito que tem de si pode isolar-se evitando quaisquer relações privilegiadas, ou adotar comportamentos para confirmar a sua crença de base “os outros não são confiáveis...vão abandonar-me!”.
A mudança de opinião de forma abrupta e drástica sobre o outro é comum no seu padrão de relacionamento. Oscilam entre uma idealização do amigo/namorado no início da relação, exigindo passarem muito tempo juntos e perante um comportamento que consideram desadequado, desiludirem-se, podendo desprezar ou ficar marcadamente irritados com o amigo/namorado. As relações interpessoais são assim pautadas por múltiplos conflitos, constantes “altos e baixos” e por um sentimento de desconfiança e de marcada dependência, assim como de mentiras.
Essa mudança constante entre a idealização da pessoa, ou relação perfeita (“não me deixes!”) para desvalorização e relação condenada (“Odeio-te!”) reflete o esquema mental dicotómico Bem vs. Mal, Eu Vs o Mundo e o pensamento paranoide “os outros estão contra mim”, que caracteriza os padrões de pensamento da PPBordeline e que condicionam o historial das suas relações com o outro e com o Mundo! Desenvolve-se dessa forma uma dinâmica relacional, existencial e comportamental instável, atribulada e muitas vezes caótica.
No filme Atração Fatal, um culto dos anos 1980 , com Michael Douglas, Glenn Close e Anne Archer observamos as principais características desta perturbação. Um homem casado aproveita uma breve viagem da família para viver um caso relâmpago com uma mulher sexy e inteligente, que aparenta uma autoconfiança e segurança consideráveis. Quando a esposa volta de viagem, Dan, o personagem de Michael Douglas, espera regressar tranquilamente e ileso à sua rotina.
Altura em que percebemos que Alex, interpretada por Glenn Close, queria muito mais do que uma relação casual, queria viver um relacionamento, casar , ter filhos e constituir uma família. Dessa forma, perante a rejeição de Dan, empreende numa feroz perseguição para conseguir o que deseja: o que ela considera o amor (daquele homem perfeito e ideal!). Tudo é sentido intensamente, no limite das emoções e sem quaisquer limites, não por ausência de empatia mas conduzido pelo enorme sofrimento causado pela rejeição e abandono do homem perfeito, Dan. Tudo é feito para o manter e para preencher o vazio!
O jovem com PPBordeline apresenta-se frequentemente inseguro sobre o seu papel, a sua identidade (“não sei o que sou , quem sou, em que acredito”), oscilando entre momentos de alta competência e momentos de desvalorização total (autocritica exagerada e pouco realista). Pode mesmo desejar ser diferente de quem é, ou não queira estar como e onde está. Os seus objectivos de vida e valores são frequentemente variáveis, o que pode por exemplo conduzir a alterações repetidas nas preferências vocacionais ou até no emprego.
Define-se pois um autoconceito instável pelo que é comum agir de formas muito distintas em diferentes momentos/contextos ou grupos sociais, adotando mesmo personagens diferentes em contextos diferentes, o que seria muito mais para além das dúvidas existenciais típicas do adolescente comum.
São escassos os estudos, por razões éticas, no entanto, a investigação sugere que a combinação de fatores de risco distantes e proximais, genéticos ou ambientais, aumentam o risco do adolescente desenvolver um funcionamento de personalidade Bordeline. Fatores como conflito familiar crónico, dúvidas ou questões permanentes que se prendem com a sexualidade, acontecimentos de vida stressantes recentes como uma história de abuso sexual ou físico; história de negligência, episódios de bullying, conhecimento e/ou exposição a suicídio de alguém querido, ou próximo, entre outros. Estes acontecimentos de vida devem ser olhados com particular cuidado.
O que podem pais/professores fazer?
É difícil por vezes relembrar como foi ser adolescente, aquela zona cinzenta em que já não se é criança mas também ainda não se tem os mesmos privilégios e direitos dos adultos.
Compreender a instabilidade emocional na adolescência pode constituir um desafio, pois a sua apresentação poderá ser diferente do que se acredita ser comum. Manter um olhar atento e cuidado no jovem que parece triste/depressivo e isolado é fundamental.
A PPbordeline é uma perturbação tratável, é contudo frequente o abandono precoce das intervenções terapêuticas, ou a recusa da necessidade da mesma. Assim, ofereça apoio, estabeleça limites claros na vossa relação e para o jovem, otimize a comunicação (em particular das emoções) e incentive procura de ajuda!
É imprescindível uma atitude não crítica face ao comportamento do jovem, e procurar perceber o que levou e leva a determinados comportamentos como a querer magoar-se, o foco deverá ser ajudá-lo a exteriorizar o que sente. Não significa isto que não possa, ou deva, partilhar o que sente, aliás até é importante que o jovem perceba que às vezes é normal sentir-se assoberbado pelas emoções e assim trabalharem nas VOSSAS emoções. Por vezes, os pais receiam que ao falar sobre este tema, possam reforçar os comportamentos dos adolescentes. Se o jovem grita por atenção dê-lhe, OIÇA-O! E neste sentido, foque-se não no comportamento e em cessá-lo, mas no que está a provocar o mesmo.
A comunicação é fundamental! Expresse a sua preocupação e amor. Faça perguntas sobre as mudanças que nota. Entenda-se, e.g. que uma discussão com um amigo ou o término do namoro poderá não parecer de grande importância, afinal o “tempo cura tudo”, mas para o jovem a vivência daquela poderá ser imensamente doloroso e desesperante. É muito importante não desvalorizar o que o jovem verbaliza sentir! Pois poderá potencializar o seu sentimento de desesperança. Se o seu filho não se sente confortável a falar consigo, sugira alguém neutro, um familiar, tio, tia, avós, professor/treinador ou mesmo a ajuda de alguém especializado. Não minimize estes comportamentos! O primeiro passo deverá ser procurar ajuda especializada que o ajude a “ler” o que está a acontecer.
Mostre-se disponível para ouvir sem crítica, a probabilidade é que ela/e queira falar, pedir ajuda e não saiba como ou tenha demasiada vergonha ou medo de pedir ajuda e perder o seu amor. Dessa forma fale com a sua filha (ou filho) apenas quando sentir que está calmo e é capaz de ouvir TUDO o que ela possa ter a dizer! A sua atitude é determinante!
Encoraje-o a procurar formas saudáveis de expressar e lidar com as suas emoções, como yoga, meditação, relaxamento, exercícios de mindfulness .
Em suma, a literatura e a experiência ditam, observe, descreva e fale abertamente do que vê e pergunte. Na dúvida procure AJUDA para si, para o jovem, para AMBOS! Afinal “não somos o que nos aconteceu, mas o que escolhemos ser!”.
Texto: Sónia Fernandes - Psicóloga Clínica e Psicoterapeuta
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