Bem sei que houve um esforço notável na criação da escola remota em tempo recorde e que os conteúdos escolares foram adaptados, reduzidos, re-equacionados e novamente reduzidos. Os horários foram repensados e os planos de aulas redesenhados vezes sem conta. Todo o trabalho hercúleo de uma classe profissional sistematicamente maltratada: os professores.
No entanto, para além das questões básicas de acessibilidade, em que uma percentagem importante das crianças portuguesas não tem os recursos necessários à telescola, quer seja computador, internet ou literacia suficiente para ser autónoma no acesso às plataformas de aprendizagem, existe um problema real que parece ser esquecido: e os alunos com mais dificuldades?
As crianças não aprendem todas aos mesmo ritmo e necessariamente que os maus alunos presenciais serão também os maus alunos online. Limitados a um quadradinho do ecrã, com vergonha de explorar as próprias dúvidas, com exercícios para fazer sem recurso ao exemplo prático no quadro, a verdade é que o rendimento das aulas estará longe de ser o mesmo.
Adicionalmente, mesmo que disponham de apoio familiar para ultrapassar as dificuldades, a verdade é que a relação pais-filhos deve existir para além do apoio académico: o que, na conjuntura atual, me parece claramente impossível!
Como exigir mais apoio dos pais, quando a escola online tem horários alargados (como se fosse presencial) e os pais estão em casa, assoberbados por teletrabalho, que curiosamente, deixou de ter hora de entrada e saída?
Sim, porque o teletrabalho, apesar das suas vantagens inegáveis, levanta algumas questões sensíveis: não havendo uma fronteira física, clara, entre a vida pessoal e a vida laboral, os limites esbatem-se, os horários dilatam-se e os e-mails acumulam-se fora de horas.
Assim, para este ano letivo de tantas dificuldades, sem o apoio desejável em casa por parte dos pais já de si exaustos, parece-me que o princípio deverá ser “menos é mais”. Menos disciplinas, menos horas em frente ao computador, menos conteúdo programático, menos trabalhos de casa.
O enfoque deve ser justamente dado às disciplinas básicas, cujas fundações são imprescindíveis para a continuidade da aprendizagem em anos subsequentes. A leitura, a escrita, a interpretação e o pensamento matemático parecem-me ser, claramente, prioritários. Os restantes conhecimentos baseiam-se na mestria destes domínios e quando não se consegue abordar tudo, aborda-se o fundamental.
Por outro lado, existe um currículo de aprendizagem na escola que, sendo igualmente fundamental, não é facilmente reprodutível em casa. Refiro-me à socialização, à atividade física e ao desenvolvimento da autonomia. Como substituir estas aprendizagens quando se está em casa?
A socialização, à parte de ser feita no seio da família (felizmente mais rica no caso de existência irmãos), pode ser feita online (Mais tempo de ecrã, infelizmente).
A atividade física pode e deve ser feita em casa e no exterior, de preferência em família, sob a forma de passeios a pé ou de bicicleta e aulas de ginástica conjunta.
A autonomia pode ser incentivada através da preparação de refeições, responsabilização pelos cuidados aos animais de estimação (caso existam) ou distribuição das tarefas domésticas.
Tendo em conta os desafios do atual ano lectivo, questiono-me se não seria simplesmente mais saudável proporcionar uma passagem administrativa aos alunos e permitir-lhes retomar as mesmas temáticas no próximo ano.
Bem sei que o SARS-CoV-2 vai permanecer entre nós, mas a estratégia de fazer avançar este ano letivo pelas férias de Verão, em busca de consolidação de matérias, parece-me ingénua. Sabemos bem que para uns será certamente consolidar matéria, mas para outros, será ouvi-la pela primeira vez.
Com um acesso tão heterogéneo à escola remota, num contexto de desigualdade social profundamente agravada pela pandemia, não seria mais lógico fazer tábua rasa e começar tudo de novo?
Um artigo da médica pediatra Joana Martins.
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