Oriundo da cultura japonesa, o Anime espalhou-se por todo o mundo, destacando-se como um fenómeno global. As suas origens remontam para a década de 1960, com as obras de Osamu Tezuka, considerado o “pai do Anime”.

Mas, se pensar com rigor, o anime não faz parte apenas da vida do seu filho adolescente, nem é algo recente. Recorda-se do Dragon Ball (“na luta contra o mal”)? Sim, é Anime. O mesmo se aplica a outros como Navegantes da Lua ou Pokémon.

Mas, o que é Anime?

A palavra Anime refere-se a animações, na maioria das vezes, baseadas em histórias Mangá, isto é, histórias de banda desenhada tradicionalmente japonesas. Por acréscimo ao conceito de Anime e Mangá, destaca-se ainda o Cosplay, isto é, o ato de usar fantasias e acessórios em representação de uma personagem. É muito provável que já tenha ouvido falar dos eventos denominados por Comicon, e Iberanime que acontecem em Portugal.

Para além destes elementos, destaca-se ainda o imenso Merchandise (por exemplo, as Figuras Funko Pop, faça uma breve pesquisa e vai descobrir que sabe, exatamente, do que estamos a falar), adaptações para o cinema (como séries e filmes live action) e jogos relacionados com o Anime – como pode constatar, o Anime faz parte da cultura do mundo, no século XXI.

Contudo, o Anime foi alvo de discussão (e de preocupação) já no ano de 1989, aquando da condenação de Miyazaki Tsutomu, um ex-técnico de fotografia e colecionador de revistas de mangá, o qual foi denominado por Otaku Murderer, após o assassinato de quatro raparigas japonesas na cidade de Tóquio, envolvendo crimes como o homicídio, a necrofilia, o abuso sexual e canibalismo. Aquando da detenção, foi descoberto que o assassino tinha na sua posse uma vasta coleção de vídeos pornográficos e de terror, predominantemente na versão Anime, e Mangá deste mesmo teor.

E foi, neste contexto, que surgiu a palavra Otaku a qual diz respeito aos fãs de Anime, mangá e jogos relacionados com estes conteúdos e também o termo Moe, o qual se refere aos sentimentos de afeição e de excitação sexual experienciada por pessoas relativamente a personagens fictícios. Por acréscimo, destaca-se ainda o conceito de Fan Service, o qual consiste na introdução de informação que, apesar de não totalmente relevante à história, agrada aos fãs – e, não raras vezes, envolve conteúdo de teor sexual (por exemplo, ângulos de imagem mais sexualizados, caras e gemidos de prazer).

A relação entre o Anime e a sexualidade, particularmente questões de identidade de género tem sido um dos principais focos de estudo da ciência psicológica.

Pensando na sexualidade presente no Anime, destaca-se imediatamente a objetificação sexual da mulher e do homem, ou seja, o ato de tratar uma pessoa como mero instrumento de prazer sexual, fazendo dela um "objeto sexual", ignorando as suas características individuais, como personalidade, identidade.

No que remete para a mulher, predomina a representação sexualizada da mulher, enquanto estereótipo da “fantasia masculina”, isto é, uma figura com seios grandes, curvas e roupa tendencialmente desapropriada e de cariz sexual.

A título de exemplo, existe uma série Anime denominada por Food Wars, a qual acompanha adolescentes que aspiram a ser chefes de cozinha e que frequentam uma academia prestigiada. Ao longo dos episódios, quando as personagens estão a provar os pratos, se um prato for delicioso, a personagem é mostrada a ter um orgasmo. Se o prato for requintado, as personagens não só têm orgasmos como surgem imagens das mesmas a saborear a comida de uma forma erótica. Algumas personagens femininas são mostradas nuas enquanto estão cobertas de comida para expressar o quão apetitoso o prato pode ser.

Outra forma de sexualizar a mulher é o uso excessivo da inocência feminina, com recurso a um elemento da cultura japonesa pop denominado por “kawaii”, que significa “cute” ou “fofo” quando traduzido para inglês ou português, respetivamente.

Em alguns animes, as mulheres são, portanto, jovens raparigas que frequentam a escola ou mulheres adultas que possuem comportamentos e características infantis (por exemplo, roupa infantil, como saias de tule; olhos grandes e um rosto infantil e inocente), alimentando a ideia da “mulher que nunca cresce” e com um papel de dependência da personagem masculina principal.

Em poucas palavras, ao olhar para a protagonista feminina, ou é percecionada como um símbolo sexual ou como uma personagem frágil, dependente e vulnerável. E, não raras vezes, quando a mulher é a protagonista principal e associada a elementos como o poder, força e controlo, apresenta traços masculinos.

E, como mencionado, os homens também são vítimas da objetificação. A título de exemplo, no Anime Fairy Tail, os homens são fortes, musculados e bonitos, surgindo em muitos episódios sem camisa.

Outro elemento que distingue o Anime é a androginia (isto é, mistura de características femininas e masculinas num único ser humano) e a identidade de género fluído (isto é, pessoa que não se identifica com uma única identidade de género e, por isso, em alguns períodos pode sentir-se do género feminino, assim como em outros momentos, a identidade pode fluir e sentir-se do género masculino). Inclusive, alguns estudos percecionam o cosplay como uma tentativa de expressão (no que remete para a identidade de género) e de consequente pertença a uma comunidade que transcende os tradicionais papéis e identidade de género.

Conceitos a reter

Eis alguns conceitos a reter e que o podem ajudar a compreender e a refletir acerca de algumas partilhas de pessoas que o rodeiam e sobre este tema, concretamente:

Por identidade sexual entende-se o sexo biológico, isto é, os órgãos sexuais com que a pessoa nasceu e ditam se é do sexo feminino ou masculino.

Quando falamos em identidade de género, já estamos a dialogar sobre a perceção da pessoa sobre o seu género, isto é, se a pessoa se sente e identifica com o género feminino ou masculino (se a pessoa sente que é um homem ou uma mulher – podendo sofrer flutuações). Dentro do domínio da identidade de género, destacam-se os seguintes elementos: pessoa cisgénero (a qual se identifica, em termos da sua identidade de género, com o sexo biológico com que nasceu), transgénero (quando a identidade de género não se encontra em sintonia com o sexo biológico, por exemplo quando alguém que nasce com uma vagina sente que é um homem) e não binário (uma pessoa que não se identifica com nenhum dos géneros, masculino ou feminino).

Destaca-se ainda a expressão de género, a qual pode ser feminina (quando uma pessoa tem aparência considerada feminina, como usar vestidos), masculina (quando uma pessoa apresenta elementos associados, tipicamente, ao homem, como usar barba) ou andrógina (quando a pessoa apresenta elementos dos dois géneros, como uma mesma pessoa usar barba e vestir saia).

Contudo, numa fase precoce do desenvolvimento, estes conceitos podem exceder o entendimento das crianças e de alguns adolescentes, podendo gerar mais sofrimento emocional. E, na verdade, independentemente da identidade de género das personagens ou orientação sexual, alguns conteúdos podem remeter para comportamentos de cariz sexual da vida adulta que não são apropriados para o público infantil.

A título de exemplo, no estudo de Deirdre Clyde, investigador do Departamento de Antropologia da Universidade do Hawai, denominado por “Flying on borrowed feathers: identity formation among gender-variant anime fans in the U.S” [Voar com asas emprestadas: a formação da identidade entre fãs de Anime de género fluído nos E.U.A], publicado em 2021, os fãs assumem que as histórias e personagens dos Anime prediletos funcionam como uma fonte de inspiração para momentos de introspeção e questionamento acerca da sua própria identidade de género.

Apesar de o boom de Anime consumido pela população americana tenha sido concomitante com uma mudança cultural na compreensão da identidade de género como separada do sexo biológico/identidade sexual (isto é, os órgãos genitais com que a pessoa nasce) e da orientação sexual (ou seja, orientação em termos de atração sexual – por homens, mulheres ou ambos), a informação anterior pode apontar para a influência do Anime.

Por último, é importante salvaguardar que o Anime não deve ser percecionado exclusivamente com lentes negativas, dado também se encontrar associado a possíveis benefícios, como o fomentar da criatividade, do gosto pela leitura e da sensação de pertença com os demais que partilham o mesmo gosto. A título de exemplo, o filme de AnimeA Silent Voice” sobre um rapaz com problemas auditivos que sofre de bullying no contexto escolar, explorando as consequências emocionais deste fenómeno ou a série “Death Note”, em que um estudante japonês encontra um caderno misterioso e descobre ter poderes para matar as pessoas cujos nomes estão escritos no mesmo, explorando o clássico debate moral acerca do bem e do mal.

Contudo, é imperativo que os adultos tenham um papel ativo em explorar e escrutinar, com as crianças e adolescentes, o conteúdo dos animes assistidos pelos mesmos. Se percecionar que os conflitos com o seu filho adolescente são constantes e prejudicam as relações e dinâmicas familiares, procure ajuda, não se encontra sozinho(a) – o mesmo se aplica à sensação de que o seu adolescente necessita de ajuda no processo de descoberta da sua identidade, enquanto ser humano (em constante) construção.

As explicações são de Sofia Gabriel e de Mauro Paulino da MIND | Instituto de Psicologia Clínica e Forense.