A vida será um momento de ruído entre dois intermináveis silêncios. A frase não é minha. Não tenho esta capacidade de síntese. Como começa e como acaba o compasso de ruído que nos coube por sorte são dois momentos que, como profissionais de saúde, temos o privilégio de assistir.

Temos uma estrutura sanitária que tenta apoiar todos os seres humanos nestes dois momentos. Pública ou privada, é indiferente. O compromisso perante o ser humano é o mesmo.

O que a pandemia do vírus SARS-CoV-2 parece fazer é expor, com uma terrível clarividência, as fragilidades de todo um sistema. A admissão, a forma de triagem dos doentes, os circuitos mistos, os espaços subdimensionados, a ausência de coortes, as equipas depauperadas, o material à conta, o desenrascanço, o gato por lebre. Tudo isto são realidades que, como profissionais de saúde, estamos habituados a reconhecer. Anos de desinvestimento no Serviço Nacional de Saúde (SNS) debilitaram-nos para além do aceitável.

E o que é que esta pandemia veio fazer? Veio pôr o dedo na ferida. Sem contemplações. Sem luva.

Agora que precisamos de nos reorganizar e esmiuçar o tipo, profundidade e limites da ferida, ficámos a perceber de forma inequívoca que não conseguimos manter determinadas características humanizadoras do nosso serviço. Porque simplesmente não temos uma infraestrutura que nos permita fazê-lo.

Muitas questões têm sido levantadas em torno dos nascimentos sem acompanhante, pelo risco de transmissão cruzada e do risco de contágio dos bebés das grávidas infetadas ou suspeitas.

No que toca à pediatria, a Direção-Geral da Saúde emitiu um parecer no sentido de permitir acompanhantes junto das crianças infectadas e internadas.

Nos adultos, as visitas foram suspensas. Esta realidade é transversal a todos os serviços de internamento, independentemente dos doentes serem COVID-19 positivos ou não e é extensível às unidades de cuidados intensivos.

E aqui temos um grande problema: concordamos com a recomendação da DGS, mas como é que operacionalizamos a presença de acompanhantes na enfermaria? Nos parágrafos seguintes farei de advogado do diabo para cada uma das possibilidades, para ilustrar a dificuldade do momento que vivemos.

Hipótese nº1: Permitimos acompanhante junto da criança

No caso das crianças hospitalizadas sem doença provocada pelo vírus SARS-CoV-2: o facto de terem acompanhante adulto, que entra e sai do hospital, é um fator de risco de contágio. Este adulto, por muito cuidadoso que seja, tem risco real de contágio, com a agravante de poder excretar partículas virais, antes de estar sintomático e com isso contaminar o seu/sua filho(a), bem como restantes doentes no mesmo espaço. Este risco é consideravelmente reduzido se os quartos forem individuais, no entanto, sabemos que essa não é a realidade da maioria dos hospitais públicos.

No caso das crianças com COVID-19: o acompanhante ficaria 24 horas por dia, 7 dias por semana, junto da criança. Não pode ausentar-se para comer – as refeições serão providenciadas no local, não pode ausentar-se para tomar banho (a não ser que o quarto disponha de WC), terá que dormir num cadeirão (porque a maioria dos quartos não tem espaço para alojamento duplo). E estamos a falar de quarto, não estamos a falar de enfermaria.

A maioria dos pais não terá qualquer problema com isto, admitindo que seja uma situação autolimitada. E de preferência pouco grave, em que a criança está globalmente bem e inspira poucos cuidados.

Mas e se for uma situação grave? E se a criança precisar de cuidados intensivos? Com necessidade de ventilação prolongada? A maioria dos doentes COVID-19 ventilados, são-no, em média, durante 18 dias. Imagine-se, dezoito dias fechado(a) num quarto em que nunca se apagam as luzes, em que os alarmes nunca são silenciados, em que existe um enfermeiro em permanência junto do doente, equipado como um astronauta e num constante corrupio. Imagine-se a dormir num cadeirão, sem poder ser substituído por outro cuidador, a lidar 24 horas por dia com o filho gravemente doente? É uma situação limite, sem pausas, sem descanso. Nós, que muitas vezes pedimos aos pais para descansarem, irem a casa dormir, comerem em paz, não sabemos como apoiar um pai ou uma mãe nesta situação. Iremos fazê-lo, mas não sabemos como.

E se o pai ou a mãe adoecer? Não se esqueçam que é um pai de uma criança infetada, pelo que a hipótese de não estar doente é muito ligeira. Em que momento o/a mandamos para casa? Quando fica com o nariz entupido? Quando tiver febre? E voltará a entrar, colocando a equipa e outras crianças em risco? E se os pais forem doentes crónicos? Damos-lhes uma máscara? E isso basta? O que fazemos? Protegemos a criança ou protegemos os pais?

Hipótese nº 2: Não permitimos acompanhante junto da criança?

Situação absolutamente anómala. Desde os anos 80 que vimos humanizando os serviços de pediatria, permitindo, para além das visitas, a presença de um acompanhante em permanência. Retrocedemos num direito que custou tanto a conquistar e que é um marco na qualidade dos cuidados de saúde?

E se o bebé for pequenino e dependente do aleitamento materno? E se a criança tiver 20 meses e chorar o dia inteiro? E se a criança tiver uma alteração do comportamento e dependa de um cuidador para se regular? E se estiver a morrer?

E aqui, face ao abismo de um enorme silêncio, quem somos nós para negar o conforto do toque humano? Nunca o fizemos, não é essa a nossa missão.

No entanto, tendo em conta o conhecimento científico atual, largamente superior ao disponível em 1920, quando se lutou contra a gripe espanhola, sabemos que é importante limitar o contágio. Não estamos na mesma época, em que admitíamos doentes respiratórios sem qualquer isolamento e que as crianças ficavam sozinhas na enfermaria, de pé nas camas de grades, a chorar ou eram submetidas em cirurgias sob éter, sem cuidados reais de assepsia.

O progresso na saúde ensinou-nos mais e melhor e permitiu-nos oferecer mais e melhor.

E por isso, nos dias de hoje, debatemo-nos com velhas questões de princípio: o bem de alguns ou o bem possível de todos?

O que fazemos?

A COVID-19 ameaça levar-nos a discutir aquela que é primariamente a nossa missão enquanto profissionais de saúde. Ameaça um sistema tecnocrata em que as decisões são tomadas a quilómetros de distância da cabeceira do doente. Ameaça a compreensão do que é uma morte digna. A pandemia do SARS-CoV-2 é hedionda porque nos rouba a possibilidade de estar com quem amamos nos limites da vida, no fim do tal compasso de ruído que nos coube por sorte.

Um artigo da médica Joana Martins, pediatra na Unidade de Cuidados Intensivos de Pediatria no Hospital D. Estefânia, Centro Hospitalar Universitário Lisboa Central.

Série

- Episódio 1: Os preparativos

- Episódio 2: Casa onde não há pão, todos ralham e ninguém tem razão

- Episódio 3: Calor, nevoeiro, chichi, comichão... Enfim, parece tortura chinesa

- Episódio 4: A pandemia pôs o dedo na ferida (sem luvas)

- Episódio 5: Somos todos heróis, mas há uns mais do que outros

- Episódio 6: Sem ovos não há como segurar a omelete

- Episódio 7: Nós, os profissionais de saúde, também temos medo

- Episódio 8: O problema dos bebés que nascem de mães suspeitas ou confirmadas para a COVID-19

- Episódio 9: Os meus vizinhos são uns loucos irresponsáveis. Denuncio-os?

- Episódio 10: E ao fim de 63 dias, as creches reabrem

- Episódio 11: Estaremos preparados para a maratona COVID-19 que aí vem?

- Episódio 12: Máscaras "à la mode" para todos os gostos. Qual é a sua?

- Episódio 13: Sem vacina à vista, infetarmo-nos faseadamente será a solução?

- Episódio 14: Que sociedade é esta que só para por causa de uma pandemia?

- Episódio 15: Trabalhamos ataviados como apicultores. Qual o impacto do vírus na prática médica?

- Episódio 16: O que sabemos sobre a vacina da BCG na COVID-19?

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