Estima-se que a endometriose afete mais de 10% das mulheres em idade produtiva, embora muitas pessoas continuam sem saber identificar a doença. O que é a Endometriose?

A endometriose consiste na presença de tecido endometrial - que é a camada que forra o útero por dentro da cavidade - fora da cavidade uterina. Comummente, este tecido sai do local onde pertence e acaba por se alojar, em 90% dos casos, na pelve, implantando-se nos órgãos aí situados, nomeadamente na trompa, no ovário ou no útero. Também pode implantar-se noutros órgãos próximos, como a bexiga, o ureter e o intestino, ou em locais mesmo à distância: no diafragma, no pulmão, no cérebro. Na endometriose, este tecido (com glândulas e estroma endometriais) cresce fora da cavidade uterina, o que faz com que este menstrue nos locais onde se implanta, originando lesões de endometriose (implantes, aderências, nódulos, quistos).

Afeta alguma faixa etária específica?

A doença afeta principalmente as mulheres em idade reprodutiva pois é estrogénio-dependente, mas também poderá existir ocasionalmente antes da primeira menstruação e após a menopausa. O pico de prevalência da endometriose ocorre entre os 25 e os 35 anos de idade. Existem alguns fatores de risco conhecidos, como história familiar, nuliparidade, exposição prolongada a estrogénios endógenos (ex.: menarca precoce, antes dos 11-13 anos, ou menopausa tardia), períodos menstruais curtos (inferiores a 27 dias), fluxos menstruais abundantes, obstrução à expulsão fluxo menstrual (ex.: estenose cervical, anomalias müllerianas), altura elevada e índice de massa corporal reduzido. Simultaneamente, mulheres com um sistema imunitário comprometido, mais expostas a maior stress e com piores hábitos alimentares também poderão ter uma evolução mais desfavorável da doença. Mulheres que tiveram múltiplas gravidezes, períodos prolongados de amamentação e menarcas tardias (após os 14 anos) têm menor risco de desenvolver endometriose.

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A doença pode ser hereditária?

A endometriose é uma condição ginecológica hereditária comum influenciada por múltiplos fatores genéticos e ambientais. Os estudos de associação ampla do genoma provaram ser bem-sucedidos na identificação de variantes genéticas comuns.

Como é que a doença impacta a vida das doentes?

A endometriose, quando sintomática, poderá ter um elevado impacto pessoal, familiar e profissional na mulher. A dor muitas vezes é incapacitante, limitativa e condiciona a realização das atividades de vida diárias. Inicialmente, e mais comummente, a dor é cíclica, durante o período menstrual e/ou ovulação, mas nos casos mais avançados poderá associar-se a dor crónica. A dor na relação sexual também está frequentemente associada à endometriose. 

Das mulheres com endometriose, estima-se que 30 a 50 por cento tenham infertilidade. Das mulheres que apresentam infertilidade, estima-se que 25 a 50% também tenham endometriose. Parece haver um risco aumentado de cancro do ovário, particularmente do tipo endometrióide, mas também do tipo de células claras, em mulheres com endometriose ovárica. O risco de transformação maligna da endometriose foi estimado em 1% para mulheres na pré-menopausa e de 1 a 2,5% para mulheres na pós-menopausa.

Quais são os sintomas?

O tecido endometrial ectópico e a inflamação resultante podem causar sintomas que variam de mínimos a severamente debilitantes. Sintomas comuns são: dor e/ou pressão abdominal/pélvica crónica, dismenorreia (dor menstrual) grave, dispareunia (dor na relação sexual), sangramento menstrual intenso e infertilidade. A dor pélvica é tipicamente crónica e descrita como incómoda, latejante, aguda e/ou ardente. Os sintomas podem ocorrer isoladamente ou em combinação; um aumento do número de sintomas foi associado a uma maior probabilidade de endometriose. 

Sintomas adicionais de endometriose incluem disfunção intestinal e da bexiga (por exemplo, dor, urgência, frequência), sangramento uterino anormal, dor lombar e fadiga crónica. Um dos principais sintomas na endometriose é a dor na relação sexual, seja na penetração, na relação profunda ou no orgasmo. Associado à dor, a pílula pode diminuir a libido e a lubrificação. Se a mulher já sabe que vai ter dor, é normal que evite ter relações para não sofrer. Este fator pode interferir gravemente na relação do casal. As mulheres com endometriose torácica podem apresentar dor torácica, pneumotórax ou hemotórax, hemoptise ou dor escapular ou cervical (pescoço), e os sintomas geralmente ocorrem durante a menstruação. 

Como é feito o diagnóstico?

O diagnóstico da doença passa por saber ouvir as queixas das mulheres que nos procuram e fazer um exame objetivo e adequado. Depois, perante esta suspeita, podemos confirmar o diagnóstico através de uma ecografia de referência ou através de uma ressonância magnética nuclear. Sendo uma doença que afeta as mulheres durante a sua vida reprodutiva, é fundamental que seja realizado um diagnóstico precoce para uma melhor orientação e preservação da fertilidade. O diagnóstico cirúrgico (laparoscopia) da endometriose tem sido o gold standard, principalmente antes de iniciar tratamentos com efeitos colaterais negativos significativos, como agonistas ou antagonistas da hormona libertadora de gonadotrofinas (GnRH). No entanto, o diagnóstico clínico presuntivo baseado em sintomas, exame físico e estudo imagiológico ganhou popularidade, especialmente para iniciar intervenções de baixo risco e baixo custo, como contracetivos hormonais ou progestativos, pois o diagnóstico presuntivo é menos invasivo, de menor risco e reduz o atraso do tratamento.

Hélder Ferreira, médico especialista em Ginecologia-Obstetrícia e coordenador do Centro de Endometriose do Centro Materno Infantil do Norte créditos: MANUEL FERNANDO ARAÙJO/LUSA

Qual é o tratamento?

As decisões de tratamento são individualizadas e consideram a apresentação clínica (por exemplo, dor, infertilidade, tumefação), gravidade dos sintomas, extensão e localização da doença, desejos reprodutivos, idade da doente, efeitos colaterais da medicação, taxas de complicações cirúrgicas e custo. Outras causas de dor pélvica deverão ser excluídas. Caso a dor seja incapacitante ou a doença agressiva e com envolvimento de órgãos (intestino, bexiga e ureter, por exemplo), a cirurgia deve ser equacionada e discutida com a doente. Nestes casos, a laparoscopia é o método 'gold standard' para o tratamento adequado da doença. Atualmente, dispomos de equipamentos de laparoscopia e cirurgia robótica, com elevada qualidade de imagem e instrumentos inovadores que permitem abordagens cada vez mais precisas, eficazes e seguras.  A excisão de implantes endometriais, endometriomas e aderências é realizada no momento da cirurgia. A intervenção cirúrgica pode ser conservadora (mantém o útero e o tecido ovárico) com uma excisão meticulosa e exaustiva dos implantes/nódulos de endometriose ou, definitiva (remoção do útero e possivelmente dos ovários em mulheres que completaram a gravidez), dependendo dos planos de gravidez e da idade da mulher. 

Esta doença não afeta apenas as mulheres, mas a sociedade e SNS como um todo. Concorda?

A endometriose pode exercer uma profunda influência negativa na vida das mulheres portadoras da doença, afetando adversamente a qualidade de vida, a participação em atividades diárias e sociais, o funcionamento físico e sexual, os relacionamentos, a produtividade educacional e profissional, a saúde mental e o bem-estar. Ao longo da vida, esses desafios diários podem traduzir-se em limitações para alcançar objetivos de vida, como perseguir ou concluir oportunidades educacionais; fazer escolhas de carreira ou avançar numa carreira escolhida; formar relacionamentos estáveis e satisfatórios; ou começar uma família, o que acaba por alterar a trajetória de vida de alguém. O potencial de impacto da endometriose no curso da vida é considerável, pois o início dos sintomas geralmente ocorre num momento da vida (menarca até à menopausa; adolescência até à meia-idade) em que várias decisões que mudam a vida e definem a trajetória são adotadas. 

O papel da mulher na sociedade atual deverá obrigar a políticas de saúde em que o bem-estar feminino deverá ser valorizado e uma prioridade absoluta. 

Ao nível do SNS, a doença tem implicações muito relevantes, pois trata-se de uma das principais causas de afluência feminina recorrente aos serviços de urgência, internamentos hospitalares e infertilidade.

A resposta adequada à doença obriga o SNS a ter recursos humanos diferenciados com equipas multidisciplinares, equipamentos avançados de imagem (ecografia e ressonância magnética) para diagnóstico e dispositivos médicos adequados para oferecer tratamentos cirúrgicos minimamente invasivos, eficazes e seguros a estas doentes.

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O que é que ainda falta fazer para melhorar o apoio dado a mulheres com endometriose?

O atraso no diagnóstico da endometriose tem a maior relevância e as suas consequências verificam-se no (in)sucesso dos tratamentos. Em relação à infertilidade associada à doença, o diagnóstico e os tratamentos antecipados poderão ser cruciais na possibilidade de aquela mulher poder constituir família. 

Nos últimos anos, houve avanços importantes em termos de meios complementares de diagnóstico e tecnologia cirúrgica cujo investimento deve ser aumentado. O sofrimento que os sintomas causam a estas mulheres é grande, real e pode ser altamente incapacitante. Dores, hemorragias abundantes, infeções urinárias, vómitos, cansaço extremo e anemia são apenas alguns exemplos de sintomas que são, sistematicamente, desvalorizados pela sociedade em geral e pelos próprios profissionais de saúde. 

Muitas vezes, as mulheres aguardam anos em sofrimento por um diagnóstico, que, quando finalmente chega, tem como única alternativa a cirurgia com remoção do útero e ovários. Torna-se, assim, evidente a necessidade de se promover uma abordagem estratégica e integrada para a endometriose, com a implementação de medidas concretas que passam, necessariamente, pela promoção da literacia; por ações de formação junto dos profissionais de saúde, nomeadamente, dos Cuidados de saúde primários; pela sensibilização relativamente aos sintomas e imediato encaminhamento das doentes para consultas de especialidade para acesso a diagnósticos e tratamentos precoces; pela constituição de equipas multidisciplinares nos serviços de ginecologia hospitalar; pela emissão de Normas de Orientação Clínica e de guidelines. É também muito relevante formalizar a existência de centros de referência nacionais para o diagnóstico e tratamento da endometriose, à semelhança do que já acontece em muitos países europeus.

Quais foram as principais decisões retiradas da sessão na Assembleia da República (AR) a propósito da petição lançada pela MulherEndo?

Na sessão da AR a propósito da petição lançada pela MulherEndo foi aprovado o Projeto de Resolução que recomenda ao Governo a elaboração de uma Estratégia Nacional de Combate à Endometriose. Nos termos da alínea b) do art.o 156º da Constituição da República Portuguesa, a Assembleia da República resolve instituir o dia 1 de março como Dia Nacional da Endometriose e Adenomiose e recomendar ao governo que proceda à criação de um grupo de trabalho, com a participação das entidades com competência relevantes, que avalie: 

a) A elaboração de uma estratégia nacional de combate à endometriose e adenomiose com vista à deteção precoce da endometriose e à adoção de medidas de melhoria da referenciação e acompanhamento das doentes com o diagnóstico de endometriose e/ou adenomiose, ou suspeita dos mesmos, e avalie o impacto desta doença ao nível pessoal, profissional e financeiro na vida das pessoas que dela sofrem; 

b) A eventual inclusão da Endometriose na lista de doenças graves que permitem o alargamento da idade para recurso à Procriação Medicamente Assistida em pessoas diagnosticadas com estas doenças; 

c) A implementação de programas para a sensibilização e informação sobre endometriose e adenomiose na comunidade. 

Considero que foi dado um primeiro passo muito relevante para a melhoria dos cuidados das mais de 200 mil mulheres portadoras de endometriose em Portugal. Com a discussão pública, em sede de plenário da Assembleia da República Portuguesa, este problema de saúde pública teve eco e lançou o alarme sobre o impacto que esta doença tem na vida de tantas mulheres e famílias no nosso país. Devemos continuar a trabalhar no sentido de oferecermos cada vez mais e melhores cuidados de saúde a estas doentes.