Todos os livros trazem uma intensão. No caso deste STOP Insónia! lemos na capa que quer “sensibilizar, transformar, organizar e produzir”. Parece-me um bom ponto de partida para vos perguntar como se expressam e articulam na obra estas quatro dimensões.

Alícia Marques: A intenção desta coleção é capacitar o leitor a trabalhar de forma guiada as suas dificuldades ao seu próprio ritmo. Na insónia o objetivo deste acrónimo STOP é: sensibilizar o leitor da sua dificuldade, conhecendo-a e compreendendo-a; transformar a forma como olhamos para a dificuldade e como interagimos com a nossa experiência interna (pensamentos, emoções e sensações); organizar uma rotina e ações que são eficazes e úteis não só para a insónia, mas que vão ao encontro daquilo que é importante para cada pessoa; e, por fim, produzir uma vida com significado, em que todas as competências são integradas, não só para gerir a insónia, mas para ensinar que a vida é mais do que esta dificuldade.

Dormir bem assenta em duas vertentes, a quantidade e a qualidade. O número de horas de sono é um valor recomendado, mas variável entre indivíduos.

No livro afastam a ideia de que o sono é um processo passivo. Aliás, o sono é um processo de reconstrução e um momento de atividade do nosso cérebro. Neste contexto, o que se considera “dormir bem”?

Célia Lavaredas: Dormir bem assenta em duas vertentes, a quantidade e a qualidade. O número de horas de sono é um valor recomendado, mas variável entre indivíduos, constituindo um traço pessoal. Sendo aconselhado que adultos saudáveis devam dormir sete a nove horas, isto significa que a maioria das pessoas nesta faixa etária necessita desse número de horas, o que não invalida que um adulto saudável tenha um sono reparador de apenas seis horas ou, pelo contrário, necessite de dez a 11 horas.

No que se refere à qualidade do sono, há vários fatores implicados. Um dos mais importantes diz respeito ao horário em que dormimos e que é regulado por dois processos, o homeostático e o circadiano. O primeiro ajuda a adormecer e a manter as primeiras horas de sono e o segundo é o que assegura a manutenção do sono durante a noite. Isto explica a vantagem de manter um horário de sono regular.

Mas este ritmo fisiológico preferencial sofre variações. Por um lado, a variabilidade entre as pessoas early bird (cotovia), aquelas que preferencialmente dormem e acordam cedo, ou as night owl (coruja), as que dormem e acordam tarde, vespertinas e mais ativas no final do dia. Por outro lado, os condicionamentos ambientais, sociais e/ou profissionais.

Idealmente, dormir bem é dormir as horas de que necessitamos, em horários regulares, num ambiente escuro e promovendo a exposição à luz natural durante o dia.

Insónia: “Muitos doentes caem na tentação de recorrer a medicação de venda livre, muitas vezes com doses desadequadas”
Insónia: “Muitos doentes caem na tentação de recorrer a medicação de venda livre, muitas vezes com doses desadequadas” créditos: Freepik

Em sentido oposto, quais as consequências físicas e mentais que advêm de um mau sono?

Célia Lavaredas: As perturbações do sono estão associadas a dificuldades diurnas significativas, perturbando a capacidade de desempenho global. As pessoas podem apresentar distúrbios do humor (irritabilidade, agressividade) cansaço e compromisso da atenção, concentração e memória, com repercussão nas suas atividades quotidianas seja a nível pessoal e social, seja a nível profissional, muitas vezes com impacto no absentismo escolar e laboral.

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O compromisso funcional atrás descrito, para além do sofrimento pessoal que acarreta, resulta também em custos acrescidos para os serviços de saúde e para a sociedade como um todo, refletindo a diminuição da produtividade. A nível orgânico, o sono tem um papel determinante na promoção da saúde. Influencia a produção de várias hormonas como o cortisol e a hormona de crescimento, a melatonina, a leptina, a grelina e a insulina.

Consequentemente, um sono mau terá repercussão negativa a nível metabólico (peso, diabetes), cardiovascular, imunológico e no desempenho físico e crescimento. “Deitar cedo e cedo erguer…”

Todos já tivemos noites “mal dormidas”, como é uso dizer-se. A partir de que momento se pode dizer que padecemos de insónia?

Célia Lavaredas: A insónia é uma perturbação do sono que se manifesta por uma dificuldade em adormecer ou manter o sono. Ambas as situações podem coexistir. Outras pessoas podem, ainda, ter despertares precoces e não conseguirem voltar a adormecer. De acordo com a fase afetada, fala-se em insónia inicial, intermédia ou terminal. Para ser definida como uma patologia crónica, os sintomas devem ocorrer no mínimo três vezes por semana, durante três meses.

Há indivíduos mais propensos a desenvolver insónia. Existem fatores que aumentam a predisposição da pessoa ao seu desenvolvimento.

Há indivíduos mais propensos a desenvolver insónia? Porquê?

Andreia Ferreira: Sim, há indivíduos mais propensos a desenvolver insónia. Existem fatores que aumentam a predisposição da pessoa ao seu desenvolvimento. Falamos de fatores biológicos como o histórico familiar de insónia ou outros distúrbios do sono, elevada taxa metabólica, ser mulher, idade superior a 60, entre outros; fatores psicológicos como elevados níveis de preocupação, ruminação, hipervigilância, problemas de saúde mental, entre outros; e fatores sociais como trabalhos por turnos, baixo nível socioeconómico, entre outros.

É lícito afirmar que a insónia é uma doença associada aos estilos de vida, nomeadamente aqueles que nos são impostos presentemente?

Alícia Marques: A insónia resulta de uma combinação de vários fatores. Existem características predisponentes que podem aumentar a probabilidade do desenvolvimento de insónia, algumas já referidas anteriormente. No entanto, a presença destes fatores não significa necessariamente que a pessoa venha a experienciar insónia. Para que a insónia aguda se manifeste, é comum acontecer um evento precipitante, que pode ser qualquer situação que tenha destabilizado a pessoa como uma mudança de rotina, conflitos interpessoais, um luto, entre outros. Esta dificuldade pode ser passageira. Contudo, é frequente que perante essa dificuldade se adotem estratégias que não são eficazes na regulação do sono como a exposição aos ecrãs no momento de dormir, o que acaba por manter a insónia, tornando-a crónica.

Insónia: “Muitos doentes caem na tentação de recorrer a medicação de venda livre, muitas vezes com doses desadequadas”
Insónia: “Muitos doentes caem na tentação de recorrer a medicação de venda livre, muitas vezes com doses desadequadas” créditos: Pactor

Têm números que permitam contextualizar o problema da insónia em Portugal face a outros países europeus? No livro referem que 60% dos portugueses relata problemas de sono.

Andreia Ferreira: Existe alguma dificuldade em estimar a prevalência de insónia, isto porque podem ser avaliadas características distintas, usar diferentes definições ou haver diferenças na amostra. Consoante os seus objetivos e metodologia, os valores associados à prevalência serão significativamente diferentes.

Até à data, não temos conhecimento de nenhum estudo que compare a preponderância de outros países a Portugal. Consoante a definição (sintomas de insónia, perturbação de insónia ou insatisfação com o sono), o predomínio pode oscilar entre os 5% e os 50%. Segundo Soldatos e colaboradores (2005), estima-se que a prevalência de insónia seja a seguinte: Brasil (79.8%), África do Sul (45.3%) e Este da Europa (32%).

Quando se fala em tratamento da insónia, é importante referir que uma larga faixa de doentes não procura o profissional de saúde.

Com a insónia chega, muitas vezes, o ciclo dos fármacos para dormir. Consideram que caímos no nosso país numa solução fácil para fintar o sono, o da prescrição de fármacos?

Célia Lavaredas: Quando se fala em tratamento da insónia, é importante referir que uma larga faixa de doentes não procura o profissional de saúde. A Terapia Cognitivo Comportamental (TCC-I) é atualmente reconhecida como sendo o tratamento de primeira linha para doentes com insónia e apresenta, face à farmacoterapia, a vantagem de ter menor risco de recorrências. Contudo, em Portugal, como na generalidade, surge o constrangimento do acesso à TCC-I.

Assim sendo, numa primeira fase e sem avaliação prévia, muitos doentes caem na tentação de recorrer a medicação de venda livre, largamente publicitada, maioritariamente fitoterapêutica e muitas vezes com doses desadequadas.

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Em contexto clínico e de prescrição fundamentada, a terapêutica medicamentosa, adequada ao quadro, em dose terapêutica e com duração controlada, ocupa, também, um espaço determinante. Não podemos ignorar que, como já referido, a insónia limita ou chega a comprometer o desempenho quotidiano, sendo necessário uma resposta a curto prazo.

Em síntese, a medicação para a insónia crónica deve ser considerada em doentes que não podem participar em TCC-I, doentes que ainda têm sintomas após a TCC-I ou aqueles que necessitam de uma terapêutica complementar temporária.

É, ainda, relevante lembrar que a insónia é, em muitos casos, um dos sintomas de uma entidade clínica mais abrangente e que impõe um tratamento direcionado a outras comorbilidades como a ansiedade ou a depressão.

“Quanto mais tempo, atenção e energia lhe dedicamos pior pode tornar-se”, lemos na introdução ao livro. Ao leitor pode parecer um contrassenso o modelo que passa pela aceitação da insónia. Isto não quer dizer que baixemos os braços e nos entreguemos ao problema. Induz, sim, uma outra abordagem ao problema. Querem explicitar qual é?

Alícia Marques: De facto, a gestão da insónia passa pela aceitação de que não conseguimos controlar quando dormimos, não podemos escolher “agora vou dormir”. Quando nos envolvemos neste processo de forçar o sono, podemos notar o efeito inverso: mais acordados ficamos. Aquilo que propomos no livro STOP Insónia é uma combinação de estratégias que nos ajudam a adotar ações mais úteis na gestão da insónia. Neste livro partilhamos: estratégias comportamentais, ações que podemos adotar antes de ir para cama, quando temos insónias, e até durante o dia; e estratégias cognitivas que se baseiam na gestão dos nossos pensamentos e emoções difíceis que podem estar associados à insónia ou influenciar a mesma.

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Levam para o livro os conceitos de autocompaixão e autocrítica e associam-nos ao combate à insónia. Querem, por favor, explicitar?

Andreia Ferreira:  A autocompaixão é a capacidade de nos tratarmos com gentileza, sem nos julgarmos excessivamente. Quando alguém sofre de insónia, muitas vezes há uma forte autocrítica, o que só piora o problema. Ao cultivar a autocompaixão, a pessoa aprende a ser mais paciente consigo mesma, reduzindo a ansiedade e o medo de não conseguir dormir, o que ajuda a melhorar a qualidade do sono.

Também se detém nos conceitos de Mindlessness vs. Mindfulness. O que os distingue?

Alícia Marques:  Mindlessness refere-se à falta de atenção e de consciência ao momento presente, existindo uma desconexão com as nossas emoções, e as nossas ações são realizadas em piloto automático. Já o Mindfulness, diz respeito à atenção plena ao momento presente, com consciência, propósito e sem julgamento. O Mindfulness é uma competência fundamental ensinada no livro “STOP Insónia, que a longo prazo promove a aceitação das emoções e a atenção, ajudando na tomada de decisão, sendo estes apenas alguns dos benefícios.

Incluem no vosso livro um “Diário do Sono”. Qual o objetivo desta ferramenta?

Andreia Ferreira: ODiário do Sono” tem como objetivo ajudar o leitor a monitorizar os seus hábitos de sono e a identificar padrões ou fatores que possam estar a afetar a sua qualidade. Ao registar as suas noites, a pessoa consegue perceber melhor o que pode estar a interferir com o seu descanso e, assim, aplicar mudanças para melhorar o sono. Ao longo do livro, o diário do sono é utilizado para aplicar uma estratégia comportamental chamada restrição de tempo na cama, cuja atualização só é possível através da análise deste registo.