“O meu filho não é uma cobaia” pode bem ser a frase mais predominante quando falamos sobre a vacinação das crianças entre os 5 e 11 anos com a vacina de mRNA da Pfizer-BioNTech (Comirnaty). As opiniões divergiram entre os especialistas, criando um espaço de incerteza que rapidamente foi ocupado por opiniões, achismos, bitaites e outras expressões desnecessárias. Infelizmente, no meio de toda a confusão de opiniões, quem ficou a perder foram as famílias: sem recomendações precisas, acabaram por sentir a insegurança da decisão caso-a-caso.
O ruído em torno desta discussão não parece ter desaparecido, ainda para mais com o parecer favorável da Direção-Geral da Saúde (DGS) emitido na terça-feira, que prevê o início da vacinação não obrigatória das crianças dos 5 aos 11 anos, ainda antes do início do 2º período escolar (previsto para arrancar a 10 de janeiro).
Porque é que eu acho que as crianças não estão a ser cobaias?
Porque até ao momento já foram distribuídas 8,28 mil milhões de doses de vacina. Só nos Estados Unidos da América (EUA), foram imunizados 11 milhões de adolescentes (entre aos 12 e 17 anos), com os respetivos efeitos adversos monitorizados.
Num universo de 8,9 milhões de crianças (12-17 anos) vacinadas, foram relatados 9.246 casos de efeitos adversos: 90,7% ligeiros e 9,3% graves, incluindo casos de miopericardite (4.3%). Os casos de miopericardite vacinal parecem ocorrer no momento da segunda imunização e acometem sobretudo os adolescentes do sexo masculino. Até ao momento, todos os casos de miocardite associada à vacina foram ligeiros e com recuperação absoluta.
Adicionalmente, o estudo que conduziu à aprovação da vacina Comirnaty (Pfizer-BioNTech) pela Agência Europeia do Medicamento (EMA), determinou uma eficácia de 90,7% na prevenção da infeção, mesmo tendo sido administrada apenas 1/3 da dose (10 mcg ou invés de 30 mcg, a dose do adulto), o que de certa forma, confirmando a mesma eficácia com uma dose muito inferior, reitera o seu perfil de segurança.
Mas qual é o risco de miocardite associado à infeção por SARS-Cov-2?
O risco de contrair doença grave após infeção por SARS-COV2 é variável de estudo para estudo, mas parece situar-se entre os 2,6-7,6%. Concretamente, o risco de miocardite isolada é cerca de 15,7 vezes superior nas crianças infetadas com SARS-CoV-2 do que nas crianças não infetadas. E foi justamente pela análise destes dados que o Comité Consultivo para Práticas de Imunização da Organização Mundial da Saúde (OMS) decretou que os benefícios da vacinação ultrapassam os seus riscos de miocardite.
De igual forma, não podemos ignorar o benefício da imunização na prevenção de Doença Inflamatória Multissistémica associada à infeção por SARS-CoV-2. Apesar da sua baixa incidência - estimada 316 casos por 1.000.000 infeções por SARS-CoV-2 -, afeta sobretudo crianças abaixo dos 10 anos de idade, precisamente o grupo etário ainda não protegido pela vacinação.
Faz sentido vacinar as crianças
E é precisamente por estas apresentações raras mas potencialmente graves, que faz sentido vacinar as crianças.
Se olharmos para os números dos EUA, seis milhões de infeções pelo novo coronavírus na população pediátrica corresponderam a cerca de 64.000 hospitalizações e 650 mortes. Estes números são obviamente muito mais tranquilizadores do que quando comparados com os 3 milhões de hospitalizações e os 718.000 óbitos registados na população adulta. No entanto, para enquadrar do ponto de vista da mortalidade infantil, o SARS-CoV-2 rapidamente se tornou na sexta causa de morte infantil nos EUA, atrás de todas as mortes de tipo acidental (acidentes rodoviários e afogamentos), cancro pediátrico, suicídio e doença cardíaca.
Não nos podemos esquecer que desde junho de 2021 que temos predominantemente a variante delta do SARS-CoV-2 em circulação, que não sendo clinicamente mais grave, é uma variante mais infecciosa.
Com a população adulta progressivamente imunizada, a verdade é que fomos deixando a transmissão viral acontecer na população pediátrica.
É certo que o período das férias de verão permitiu manter isolamentos e adiar a constatação do inevitável: nas primeiras duas semanas de novembro, em Portugal, com uma incidência (à data) em torno dos 200 casos por 100 mil habitantes, o grupo etário mais afetado era justamente o das crianças abaixo dos 9 anos de idade (dados da DGS divulgados a 19/11/2021).
No contexto atual, com uma incidência de infeção em torno dos 430 casos por 100 mil habitantes, assumo que é inevitável que Portugal siga o exemplo de Itália e de Espanha e inicie o processo de vacinação das crianças dos 5 aos 11 anos. Vamos a tempo de diminuir o contágio, reduzir a incidência neste grupo etário e prevenir assim os casos graves (felizmente raros) de hospitalização e necessidade de Cuidados Intensivos Pediátricos.
Um artigo da médica pediatra Joana Martins.
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