O relatório do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC), divulgado no passado dia 28 de fevereiro, é devastador. As alterações climáticas estão a ocorrer muito mais rapidamente do que o esperado, alimentadas por ciclos de feedback positivo.
Portugal tem vindo a registar um agravamento do índice de aridez, colocando mais de 60% do país suscetível à desertificação.
Com alterações tão rápidas e dado que o ciclo da água tem vindo, há muito, a sofrer alterações causadas pela intervenção humana, é necessário repensar e agir rapidamente na gestão da água, como recurso estratégico fundamental à manutenção da vida.
A gestão da água faz-se em 3 etapas: captação, distribuição e consumo.
De onde provém a água que gastamos?
A captação de água é feita nas barragens, nos rios e nos aquíferos subterrâneos e a chuva costumava ser suficiente para repor os seus níveis, mas já não o consegue fazer plenamente, assim como já não consegue manter o caudal dos rios e muito menos repor os aquíferos.
No caso da agricultura, grande parte da rega é feita através de água captada nas invisíveis águas subterrâneas.
Em 2022, os Planos de Gestão de Região Hidrográfica concluíram que 97,3% e 98,5% das massas de água subterrânea se encontravam em bom estado quantitativo e qualitativo, respetivamente. Apesar de ser um bom indicador, sabemos que existe um claro excesso de consumo das águas subterrâneas, para alimentar uma paisagem cada vez mais sequiosa e que existem aquíferos significativamente contaminados com nitratos.
A depleção demasiado rápida das águas subterrâneas acarreta problemas graves que não se “vêem”. Esta água retira-se rapidamente do subsolo com a ajuda de estações de bombagem, mas demora uma eternidade a ser reposta, tendo a intervenção humana no planeta, com a consequente alteração do ciclo da água, tornado esse reabastecimento ainda mais demorado e escasso.
Anos de desinvestimento e falta de intervenção na rede de distribuição - cujas perdas atingem em certas autarquias os 70% -, sistemas de monitorização obsoletos, desperdício nas infraestruturas e no consumo, fizeram com que atualmente a distribuição seja responsável por uma imensidade de água desperdiçada. Esta má gestão tem consequências diretas no exaurimento dos aquíferos, das barragens e dos caudais, dado que as necessidades persistem e a água que se perde, torna necessário voltar a extrair, para repor o desperdício.
É urgente mudar radicalmente essa gestão. A prioridade deve ser uma intervenção musculada nos sistemas de distribuição, modernizando as infraestruturas e os seus sistemas de monitorização, até se atingirem valores de perdas minimamente aceitáveis.
Claro que, em matéria de consumo, é importante que cada um de nós faça a sua parte na contenção do uso da água no nosso quotidiano. Não é preciso inventar a roda. Basta usar a água com parcimónia e não a desperdiçar. Se puder ser criativo, melhor ainda.
Mas para realizar verdadeiras poupanças no consumo, a grande mudança tem de ser feita pelos grandes gastadores, em particular pelo grande consumidor de água no planeta: a agricultura, com a sua componente de pecuária.
A utilização de água potável para regar campos de golfe e jardins é o corolário do desperdício, mas é algo que pode ser solucionado de imediato, com as disponibilidades existentes, sendo já muitos os empreendimentos que o fizeram, com grande impacto, passando a utilizar exclusivamente águas cinzentas na rega. São soluções técnica e orçamentalmente exequíveis que deviam ser implementadas por sistema.
Na indústria, as soluções são forçosamente personalizadas, específicas, mas estão dependentes apenas da vontade, do empenho e da persistência dos seus quadros dirigentes e técnicos, para encontrar a maior poupança possível com o menor custo possível.
Os agricultores por outro lado, são a base da nossa vida em sociedade e podem representar a maior fatia na poupança de água, em quantidade e consequentemente obter o maior impacto.
Mas não o conseguem fazer sem uma mudança de paradigma no mercado.
Todos somos capazes de investir em roupa e em gadgets caros, mas queremos comer barato. Todos queremos comer morangos no inverno e tangerinas no verão. Todos gostamos de frutos exóticos e de legumes estranhos ao longo de todo o ano. A pegada de água das nossas compras é enorme. Se queremos poupar água, como consumidores, devemos fazê-lo através das nossas compras.
Os agricultores precisam de ter um mercado que lhes compre, por um preço justo, os produtos frescos, de época, produzidos com mínimo insumo e mínimo impacto. Há que estabelecer regras para os preços de aquisição, para que o lucro não fique todo na distribuição.há que certificar a produção implementando requisitos ambientais rigorosos, nomeadamente no consumo de água. Temos de implementar métricas rigorosas para controlo do gasto de água e das necessidades de água, conforme a cultura e o modelo de cultivo. E informar o consumidor, fomentando uma escolha consciente.
E o preço justo para os agricultores tem de pagar o investimento em maior formação ambiental, melhores técnicas de cultivo, operações culturais menos invasivas e mais localizadas. Tem de pagar a capacitação das parcelas para a captação e armazenamento próprio de água, para a tecnologia de controlo de rega, tudo isto sempre com o melhor controlo ambiental existente no mercado.
A reconversão de todos os sistemas de produção de carne e derivados para o regime de extensivo, tal como já é feito com por alguns produtores em Portugal, como é o caso da produção de carne maronesa, com a deambulação livre dos animais a contribuir para um melhor controlo dos incêndios e a proliferação da florística regional. A carne pode chegar mais cara ao consumidor, mas chega mais saudável e com uma pegada ambiental incomparavelmente menor.
Chama-se a isto pagar o custo à cabeça, porque sem isso, o custo ambiental a pagar no futuro é infinitamente superior.
Se a isto o mercado responder com uma diminuição do consumo optando pela carne certificada, então é possível aumentar a resiliência da produção animal, em simultâneo com a diminuição da dependência de importação de carne de países com normas de produção muito pouco sustentáveis.
Mas tudo isso continuará a ser insuficiente, se não alterarmos radicalmente o modo como pensamos e intervimos na paisagem.
Nas áreas urbanas, a impermeabilização do pavimento, a construção em zonas de cheia, a canalização das linhas de água e as redes de recolha de pluviais, impedem a natural absorção da água da chuva, que escoa rapidamente em direção ao mar. Nos últimos anos tem havido progresso em algumas autarquias com a criação de zonas verdes que absorvem água, o reaproveitamento das águas das ETARs, a intercalagem de zonas impermeabilizadas com árvores, a conversão de passeios para pavimentos permeáveis e mesmo com a renaturalização de troços de cursos de água.
A grande diferença, no entanto, só poderá ser obtida pela reposição massiva de água nos aquíferos, nos solos e em todo o ciclo da água, para mitigar o impacto das alterações climáticas.
Fora das cidades, a renaturalização dos rios e de todos os cursos de água, a reflorestação com espécies nativas, o respeito pela orografia do terreno e pelas condições edafoclimáticas, num cuidado rigoroso pelas estruturas biofísicas basilares, são etapas fundamentais.
Os rios são estruturas vivas, parte fundamental do ciclo da água, mas são ecossistemas frágeis e não se compadecem com intervenções excessivas. A manutenção das galerias ripícolas obriga à criação de zonas de exclusão de intervenção, bem como a renaturalização de grandes áreas já intervencionadas anteriormente, repondo espécies fulcrais destas zonas, reforçando as margens para conter a erosão, restabelecendo a sinuosidade natural dos cursos de água, para garantir maior lentidão da corrente, porque a natureza não cresce com régua e esquadro, não é simétrica, nem retilínea. E é mais bela por isso. Devemos aprender a aceitar a irregularidade da natureza como garante da estabilidade do sistema.
A renaturalização, a noção de floresta, a desflorestação, os usos da madeira, os incêndios e o tipo de agricultura praticado, mas também a permanência de estruturas humanas na totalidade do território, tudo tem de ser repensado, não a curto prazo como é costume, mas como uma intervenção a longo prazo, de aplicação paulatina e pensada, para enfrentar o futuro sombrio que se avizinha.
A pandemia demonstrou, sem qualquer sombra de dúvida, que hoje em dia é possível a uma grande quantidade de trabalhadores exercer as suas profissões remotamente, com a mesma qualidade e eficiência do trabalho presencial.
Isto representa uma oportunidade imensa para o desenvolvimento do interior do país, levando para zonas praticamente abandonadas gente altamente qualificada e versada em todo o tipo de especialidades técnicas, muitos deles em novas tecnologias, que querem levar uma vida mais tranquila, mais próxima da Natureza.
Esta proximidade pode ser uma importante janela de aproximação também para aqueles que, em ambiente urbano, estão afastados da realidade do mundo rural, estabelecendo uma ponte entre os dois mundos, permitindo um maior acesso aos corredores do poder que decidem à distância, sobre um mundo sobre o qual não estão informados.
Afinal de contas, quando falta água, o mundo rural é o primeiro a sofrer.
Para fazer uma diferença significativa e conseguir inverter o ciclo de destruição do mundo natural, não nos privando do conforto conseguido pela evolução da tecnologia e do desenvolvimento científico, temos de rejeitar a uniformidade e optar por soluções diversas, adaptadas aos diferentes contextos, à regionalidade, que nos permitem avaliar ao longo do tempo as várias vantagens e desvantagens de cada opção e agilizar correções e inflexões, conforme os resultados obtidos e, em particular, no caso destas não produzirem os resultados esperados.
Não podemos persistir sempre nas mesmas soluções, muitas delas megalómanas e incomportáveis, porque isso desaproveita as milhentas inovações disponíveis e torna a escolha de outros sistemas potencialmente mais eficazes, mais pesada e onerosa.
Acima de tudo para obter resultados rapidamente e com o menor custo possível, sempre com o foco no longo prazo, é preciso investir na Natureza, permitindo-lhe que exerça a sua capacidade de se auto regenerar e de restabelecer o equilíbrio de que o planeta precisa.
Um artigo de opinião de Ana Serrão. Ana Serrão frequenta atualmente o curso de Agronomia na Escola Superior Agrária de Santarém e é licenciada em Tradução pelo ISLA. Como associada da "ZERO – Associação Sistema Terrestre Sustentável”, tem trabalhado em iniciativas de ligação da associação à sociedade, com foco na mudança de mentalidades, hábitos de consumo e na gestão do arvoredo urbano.
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