Tracemos uma linha imaginária no planisfério. Um meridiano que, de norte a sul, nos desenhe o meridiano nove, a partir da referência medida no Observatório de Greenwich, em Londres. Vai o leitor perceber que a nossa velhinha Europa apenas toca nos nove graus de longitude oeste em dois pontos. Um, na insular Irlanda. Outro, exatamente em Portugal, em Colares, mais precisamente, na aldeia de Casas Novas. E este, luso, o único meridiano nove fincado em território continental europeu.
É aqui, não muito longe da aspereza climática e oceânica junto ao Cabo da Roca e à fachada oeste da Serra de Sintra que vamos encontrar vinhas corajosas. Bravas porque capazes de resistir a ríspida nortada, a sucessivas manhãs de nevoeiros intensos, à salinidade atlântica, devolvendo-nos a valentia com vinhos frescos, minerais, vivazes que não nos escondem a sua anterior vida, enquanto uva, habitando junto a um litoral difícil. Uma região de vinhas antigas, com produtores em quarta e quinta gerações.
Neste território de meridiano nono que reside uma história de vinhos e de perseverança. Uma narrativa a que poderíamos chamar “A vida épica de Bodo von Bruemmer”, sem favor ou exagero à epopeia deste homem que faleceu em 2016 com 105 anos e que, com 96 anos, no recobro de uma cirurgia particularmente delicada, e após ter sobrevivido a dois cancros, acordou com um sonho, o de fazer vinho. “Três semanas depois eram plantadas as primeiras vinhas. Na altura perto de seis hectares”. Nasciam aquelas que são tidas como as vinhas mais a ocidente da Europa continental. Não esquecer que, longe, bem para lá da linha do horizonte, no seio do Atlântico, crescem as ocidentalíssimas vinhas dos campos de lava da ilha do Pico, no arquipélago dos Açores.
Brindamos com António Figueiredo no salão da casa principal do Casal de Santa Maria. Vista desafogada para um horizonte que, neste dia, não desmente a tempera deste clima à beira mar. O verão no calendário parece ser, aqui, uma memória distante. O sopro de vento Noroeste e o teto baixo devolvem-nos a imagem de um Atlântico outonal. “Reparará na orientação das vinhas, alinhadas com o vento dominante. Isto para resistir às suas investidas”, enfatiza António.
O enólogo residente (a par de Jorge Rosa) desta quinta acaba de nos apresentar o Casal de Santa Maria branco 2016, vinho que no decurso deste verão estará à mesa dos restaurantes de La Brasserie de L’Entrecôte, casa inspirada no famoso Café de Paris, de Genebra. Uma das referências deste produtor da região de Lisboa que, há dez anos, desde o sonho epifânio do Barão, vem afinando um portefólio, agora com 13 referências, a que se junta, recentemente, o primeiro vinho rosé, decorrente da vindima de 2017. “Já o apresentámos publicamente e vai ter lançamento ainda este ano. Tem um trabalho bem estruturado de barricas de madeira de carvalho francês, com um estágio de um ano e três meses. Hão de perceber a fruta, conferida pela casta Syrah e o carácter floral da Touriga”.
Um rosé que, tal como a restante família com a chancela Casal de Santa Maria, nos recorda o mar, com fortes notas salgadas, o que não lhe retira elegância e lhe acrescenta um grande potencial de envelhecimento.
Vinhos bons sobreviventes, como o homem que os sonhou. Bruemmer nasceu em 1911 numa ex-província russa do Báltico, a Curlândia, hoje no território da Letónia. Em 1918, durante a Revolução Russa, ainda criança, Bruemmer foge com a família para a Alemanha. Seguir-se-ão outros territórios. Depois de passar por 15 escolas diferentes, assenta na Suíça, onde irá sedimentar a sua vida profissional, ligada à banca.
“O barão acalentava um sonho, ter um lugar estável para construir a sua casa familiar”, explica-nos António. Uma meta que haveria de chegar aos 51 anos quando, numa visita a Portugal, se apaixona por Colares. Em 1962, Bodo von Bruemmer compra o Casal de Santa Maria, uma quinta do século XVIII, sobrevivente ao Terramoto de 1755. É ai, que o Barão vai fundar a maior coudelaria portuguesa de cavalos árabes nas décadas de 1970 e 1980. Na época os solos da quinta não conheciam vinhedos desde 1903. Teriam de volver perto de cem anos para do sonho de Bruemmer renascerem as vinhas e os vinhos.
Sentádos à mesa, com António Figueiredo, viajamos sensitivamente dentro de um copo de Casal Sta. Maria Branco 2016. Uma referência com uma primeira versão de 2010 que faz a Ligação da mineralidade e frescura da casta Arinto, untuosidade e corpo da Chardonnay, e salinidade da Malvasia de Colares.
“Um vinho que vai combinar bem com o molho forte que acompanha a carne [molho que, acrescente-se, combina 18 ingredientes, alguns deles secretos]. Trata-se de um néctar com perfil de verão, mais seco e uma porta aberta para conhecer Colares. Tem o mar, frio, as notas graníticas de Sintra. Na boca quase lhe sentimos a hortelã doce. É intenso na prova e mantêm-se no palato. Quanto a mim um vinho que pede comida”.
Quando de oito cabras de faz um rebanho de 1500…
Hoje é a terceira geração da família Bruemmer herdeira do sonho do patriarca. Nicholas, neto do fundador desta casa, lidera o projeto. Uma família plena de narrativas dentro da grande história. Como a da época em que 1500 cabras pastavam e limparam toda a vegetação dentro da propriedade. “O barão acolheu oito cabras pertencentes a um amigo e a prole tornou-se incontrolável”, confidencia-nos João, um dos técnicos de turismo envolvidos no atendimento na Quinta.
Nos minutos que antecedem a prova passeamos na propriedade, percebendo-lhe diferentes terroirs, decorrentes da maior ou menor exposição aos ímpetos marítimos. “Conseguimos produzir vinhos típicos do Minho, como o da casta Alvarinho, ou um da casta Syrah, comum na Península de Setúbal, assim como as Marisco e Malvasia, típicas de Colares”, salienta João enquanto percorremos a alameda onde floram milhares de rosas. “O barão após a morte da mulher, Rosário, aqui mandou plantar cinco mil rosas de diferentes espécies”, salienta o nosso interlocutor.
À prova temos, agora, um Malvasia DOC Colares branco de 2013. “No nariz percebemos notas a laranja, assim como hortelã fresca e manjericão. É um vinho, na prova, muito elegante e leve. Em meu entender um vinho que pede mariscada”.
Ainda nos brancos, António propõe-nos um Casal de Santa Maria Sauvignon Blanc 2016, um vinho com notas vegetais e onde lhe percebemos a salinidade. “Aconselho-o a acompanhar um sushi, um salmão fumado”, refere o enólogo.
Néctares que saem de uma adega de proporções modestas, onde repousam barricas de carvalho francês para vinhos que não pedem muita madeira. Em média obedecem a estágios de seis meses. Algumas das referências após abandonarem as barricas estagiam entre um ano, a um ano e meio, em garrafa. Para depois saírem para “o mercado nacional que absorve 85% da produção, mas também para Inglaterra, Bélgica, Macau e, eventualmente no futuro, para Taiwan”, salienta António Figueiredo.
Dos brancos para os tintos. Duas referências à prova. Arrancamos com um Casal de Santa Maria Pinot Noir de 2015. “Provém de um ano com um agosto nebulado, mas com os restantes meses, até outubro, generosos no estio. Este vinho estagiou em barrica apenas o tempo suficiente para ficar com o nosso estilo. Um tinto que ainda está muito novo”, como refere o nosso anfitrião.
Um vinho que na prova olfativa nos encaminha para territórios balsâmicos e de caruma de pinheiro, um pouco de fundo de caixa de charuto e um pouco de fruta. Na prova, equilíbrio na acidez, redondo na boca e com persistência no palato. “Aconselho-o para sobremesas, chocolate, ou mesmo bacalhau”.
A fechar, um Casal de Santa Maria DOC Colares, ano de 2007. “Enviei-o à equipa do norte-americano Robert Parker, da revista `Wine Advocate`, para prova. Recebeu 93 pontos o que, para nós, foi excelente. A região nunca tinha recebido, no presente, uma nota assim. Estamos perante uma casta que esteve quase extinta”. Um vinho que ao palato nos remete para notas de ginja.
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