Gaspar Frutuoso, historiador e sacerdote nascido nos Açores, em Ponta Delgada, escreveu entre 1586 e 1590, Saudades da Terra, descrição, em vários capítulos, dos arquipélagos dos Açores, Madeira e Canárias, também Cabo Verde e outras regiões atlânticas. Geografia, história, fauna e flora, usos e costumes são detalhados na obra que, no seu livro VI, faz referência à ilha de São Jorge e, ali, elogia a qualidade dos pastos, do leite e, em consequência, dos queijos que deles resultam.
Volvidos perto de 500 anos, a ilha açoriana mantém-se berço de um queijo feito exclusivamente de leite de vaca cru, coalho e sal. Um produto que não deve atributos apenas à singularidade do território onde nasce, aos pastos de altitude, com gramíneas e leguminosas dificilmente encontráveis noutras regiões e ao clima local. As populações que demandaram e se instalaram na ilha, introduziram e desenvolveram os métodos de produção de queijo, inclusivamente com o povoamento, ainda no século XVI, de Flamengos. Estes, encontraram no território de São Jorge condições ambientais semelhantes às da sua terra natal, no continente europeu.
No século XX, houve que encontrar uma via para preservar as características de um queijo que, tal como nos é apresentado hoje, cilíndrico e volumoso, possante de peso – até 12 Kg – conta com uma linhagem que, se estima, tenha 200 anos.
Nasce uma Região Demarcada
Em 1986, nasceu a Região Demarcada do Queijo de São Jorge, ao abrigo de um Decreto Regulamentar Regional onde lemos as seguintes palavras em prol da proteção do produto: “a promoção de todas as ações que defendam um dos mais afamados queijos regionais – o queijo São Jorge, produzido na ilha de São Jorge, de outros queijos de tipo semelhante, que põem em risco a fama do produto genuíno”. Em suma, o Queijo São Jorge ganhou um território demarcado equivalente ao da ilha onde é produzido, aproximadamente 237 Km2, assim como a matéria-prima que lhe serve de base, o leite.
Volvidos 35 anos, o Queijo São Jorge não só ganhou a sua Região Demarcada como recebeu, ainda em 1991, a Denominação de Origem Protegida (DOP), o mesmo significa dizer que é produzido numa região específica, e comercializado sob denominação própria.
Com data de nascimento a remontar a 1991, a Confraria do Queijo de São Jorge, está encarregue, desde 1994, da certificação daquele queijo. É com António Azevedo, Presidente desta confraria açoriana, que franqueamos as portas de um mundo zelosamente guardado.
Ponto primeiro, há que “separar o trigo do joio”, ou seja, perceber que há diferenças entre um queijo ilha – há os em todas as ilhas açorianas – e o Queijo São Jorge DOP, como sublinha o nosso interlocutor: “havia que ser defendido. O consumidor pode, sem o saber, comprar um queijo ilha, convencido de que é um Queijo São Jorge. Uma oportunidade de mercado que se percebeu nas restantes ilhas açorianas, dado o potencial enorme dos nossos queijos. Chegou-se a levar queijeiros daqui [São Jorge] para outras ilhas”. Todavia, sublinha António Azevedo, “o segredo não está apenas nos queijeiros, está no terreno, no leite, nas pastagens. Com a criação da Região Demarcada, criou-se um caderno de encargos, com as características do Queijo São Jorge e o seu método de produção”.
Na época, início dos anos de 1990, “pensou-se que poderiam ser os agrupamentos de produtores a proceder à certificação. Contudo, a Comunidade Europeia determinou que não poderiam ser os agrupamentos de produtores a certificar. A Confraria, que já na altura era um organismo de divulgação e promoção do queijo, passou a certificar o Queijo São Jorge DOP”.
O consumidor pode, sem o saber, comprar um queijo ilha, convencido de que é um Queijo São Jorge.
Antes de perceber o queijo, há que o situar no território que lhe marca a matriz. “Estamos a falar de uma ilha de pastagens na ordem dos 500 metros de altitude, com flora muito característica. São aspetos que concorrem para a diferença no queijo. Sentimos o aroma fresco, o picante muito característico do nosso produto, tem uma pasta dura ou semidura com pequenos ’olhos’ disseminados na massa”, refere o Presidente da Confraria do Queijo São Jorge. À guisa de informação complementar para o consumidor, socorremo-nos do caderno de especificações do produto, para acrescentar que o queijo tem a forma cilíndrica, regular, tipo “roda”, com dimensões entre os 25 cm e 35 cm de diâmetro. A crosta tem consistência dura, cor-amarelo-escura, de aspeto liso. A pasta deve apresentar textura firme, por vezes quebradiça.
“É, acima de tudo, um alimento natural, produzido a partir de leite cru de vaca, proveniente de animais que pastoreiam ao ar livre durante 365 dias por ano”, enfatiza o nosso entrevistado, também Diretor Geral da Uniqueijo, entidade que se dedica à produção, armazenagem, cura e embalamento do Queijo São Jorge DOP e que agrega cooperativas agrícolas e de lacticínios daquele território, como veremos à frente. Quanto à comercialização, está entregue à LactAçores união de cooperativas que agrupa a Uniqueijo, a Unileite e a Cooperativa do Faial.
Um queijo de carácter singular
Não menos importante no carácter deste queijo intenso de sabor, é o seu tempo de cura, o mesmo é dizer o seu envelhecimento. “A maturação mínima é de três meses, não tem um máximo de cura. Foram as questões de marketing e de avaliação entretanto feitas que nos levaram a propor colocar queijos no mercado com curas de três, quatro, sete, doze, vinte e quatro e trinta e seis meses”, adianta António Azevedo. Acresce que no final de 2021, “como forma de celebrar os 30 anos da Confraria, lançámos uma edição de Queijo São Jorge DOP com três dezenas de meses”.
Porque a prova dos nove se faz à mesa, há que atentar em palavras sabedoras: “se a pessoa não gosta de um sabor muito forte, aconselho um queijo com três meses de cura. Se por outro lado, aprecia um picante mais acentuado, mais ´encorpado´, é claro que vai para um queijo de vinte e quatro, trinta ou trinta e seis meses. Na dúvida, que se inicie a prova com um queijo de sete meses de cura, pois balanceia o produto mais novo com aquele de mais idade”.
Na dúvida, que se inicie a prova com um queijo de sete meses de cura, pois balanceia o produto mais novo com aquele de mais idade
Prova que na Confraria do Queijo de São Jorge, com a responsabilidade que lhe é inerente, a de avaliar os queijos aptos a DOP, incumbe a “um painel com perto de 25 provadores que aprecia todos os lotes produzidos. São estes que dizem se as características de determinado queijo estão de acordo com as definidas no caderno de especificações”, sublinha António Azevedo, que acrescenta tratar-se de uma “prova cega [sem que se saiba qual o produtor] que funciona com grupos de cinco provadores que apreciam 30 lotes por cada prova, com intervalos entre a degustação de cada dez queijos”. Pausas para dar descanso e limpar o palato: “fazem-no com água e maçã verde. No decorrer da prova, é apresentada apenas uma fatia de queijo, para lhe serem avaliados o sabor e a pasta. Os provadores recorrem a uma tabela com as pontuações a aplicar face aos aspetos que são classificados. Em função disso, a coordenadora do painel aprova ou rejeita os queijos apresentados”.
Leite, pandemia e consumidores
Três fábricas de produtores de queijo na ilha (as cooperativas Finisterra, Lourais e Beira), reúnem 211 produtores de leite, estes com uma “média de idade compreendida nos 49 anos, enquanto a nível nacional anda nos 65 anos”, realça António Azevedo que acrescenta: “o número de produtores reduziu-se bastante, embora não a área destinada aos pastos, pois existe a compra dos terrenos por parte de outros produtores. No que toca à quantidade de leite produzida, esta mantém-se estável, entre os 29 e os 30 milhões de litros por ano”. Realidade à qual o nosso interlocutor não subtrai o fator receio, face “ao aumento dos custos de produção, o que pode levar a uma diminuição desta. Sentimos que há o afastamento por parte de alguns produtores com receio deste aumento do preço”. Cenário a que acrescem perto de dois anos de pandemia de COVID-19 e os inerentes aumentos dos custos de produção e tempos de transporte: “para ter uma ideia, compramos o plástico para embalamento do queijo em vácuo na Alemanha. Além do aumento de preço, demoraríamos dois ou três meses para ter aqui o produto, agora pedem-nos cinco ou seis meses de compra antecipada. É uma situação que nunca vivemos. Uma incerteza muito grande. Como é óbvio, tivemos de mexer no preço do mercado. Agora, há que saber se o consumidor tem capacidade para acompanhar esse aumento”, adianta António Azevedo.
No que toca ao Queijo São Jorge DOP, a pandemia não trouxe o problema acrescido do escoamento do produto no mercado: “produzimos perto de 2400 toneladas de queijo, destas perto de 800 toneladas de queijo DOP, e estamos a comercializar em grandes superfícies, mercados gourmet, embora não estejamos muito presentes no canal Horeca que tem sofrido bastante com os encerramentos na restauração e hotelaria. Logo, conseguimos mesmo ter um crescimento durante o confinamento. Por exemplo, o queijo ralado triplicou as vendas. As pessoas ficaram em casa e acabaram por comprar mais queijo para cozinharem”.
Com o mercado nacional a representar “57,9% de vendas e o açoriano a subir até aos 23,4%”, sobram ao Queijo São Jorge como mercados externos os “Estados Unidos com 9,7% e o Canadá com 6,9%, nestes dois casos com peso no mercado da saudade”, a comunidade emigrante portuguesa. “O restante queijo segue para a Europa, mas é residual”, adianta António Azevedo que, ainda sobre a venda de queijo na América do Norte enfatiza que “corremos o risco de estar muito concentrados nesse mercado, pois as gerações mais novas podem trazer hábitos de consumo diferentes ou não querem pegar nos negócios dos pais. Logo, há o interesse em entrarmos em novos mercados”. Entre estes novos horizontes para o Queijo São Jorge, assome a China: “é realmente um mercado imenso. Dizemos, em jeito de brincadeira, que se todos os chineses gostassem de queijo, bastaria vender um grama a cada um e tínhamos os nossos problemas resolvidos”. A refrear o negócio a Oriente esteve a pandemia: “houve receio e o fecho de fronteiras. Tínhamos tido alguns contactos com empresários chineses em feiras internacionais, embora sejam mais vocacionados para a compra de leite do que de queijo, e o nosso tem um sabor forte, não apreciado na China”.
Ambições: um festival do queijo e o futuro museu
À componente científica, a Confraria do Queijo São Jorge junta uma dimensão cultural: “devemos ser a única no país com a dupla atividade, a primeira a da certificação e, por outro lado, a da divulgação, promoção e defesa do queijo São Jorge. Mesmo com as limitações em termos orçamentais e de recursos, fazemos anualmente uma cerimónia de entronização de novos confrades para homenagear pessoas envolvidas no queijo São Jorge e que contribuíram para o seu desenvolvimento, por exemplo em estudos publicados”, recorda António Azevedo.
No embalo dos 30 anos da Confraria, “organizámos as jornadas do Queijo São Jorge [novembro de 2021] e trouxemos oradores para discutirmos problemas, novas formas de comercialização e novos caminhos. Temos também uma ideia recente, a de empreender anualmente um festival do Queijo São Jorge. Este ano de 2022 pode marcar o arranque”.
No que toca à abertura de um futuro Museu do Queijo São Jorge, o Presidente da Confraria sublinha a “ambição, foi falado com anteriores governos regionais, pois achamos que também deve ser uma opção política. Se o Governo Regional já aprovou museus do vinho, da baleia, o Queijo São Jorge também merece um museu em sua honra. Temos as instalações, os responsáveis da área cultural mostraram vontade, vamos ver se se concretiza o sonho. As gerações vindouras terão um local onde se poderão rever no passado do Queijo São Jorge”.
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