A conversa com o historiador Ricardo Raimundo aproxima-nos de forma vivida do passado, em concreto dos séculos pretéritos portugueses. Reis e rainhas, figuras de proa e outras tantas personagens, algumas esquecidas no baú da memória, ganham um sopro de vida. Um repositório de narrativas onde também cabe a lenda e o tempero especial que enigmas e mistérios emprestam a uma boa história.

A perguntas como, onde nasceu D. Afonso Henriques? Terá o nosso primeiro rei morrido ainda criança? Quem primeiro descobriu o Brasil? De quem são os restos mortais que descansam no túmulo de Luís Vaz de Camões? Ricardo Raimundo devolve-nos com respostas com o seu q.b. de controverso, mas que fundamenta – sempre - em factos. Tópicos para uma conversa com o historiador, nascido em Lisboa em 1981, autor do livro Enigmas e Mistérios da História de Portugal (edição Manuscrito). Pretexto para percorremos perto de mil anos de história, sintetizados em momentos marcantes, tendo como ponto de partida alguns entre os 33 acontecimentos que Ricardo Raimundo incluiu no seu novo livro.

Não poderia deixar de lhe perguntar como vê o momento presente no conflito entre a Rússia e a Ucrânia. Isto, olhando para o facto tantas vezes propalado de que a história se repete. Recorda-lhe algum momento anterior da história da humanidade?

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Sim, acaba por ser recorrente e os próprios meios de comunicação social estão aí para nos recordar o facto. Já escutei, e bem, que os momentos são sempre diferentes, os contextos também o são. Mas sim, recorda-nos alguns episódios mais recentes do século XX. A história acaba por ter esta expressão. Como estamos a lidar com o ser humano há motivações semelhantes. Por exemplo, Portugal vive atualmente momentos que nos recordam períodos passados, basta olhar para os escritos de Gil Vicente ou de Eça de Queirós. Quem lê As Farpas, identifica-se com o momento presente.

No seu livro refere na introdução que a prática do historiador é muito semelhante à do romancista, o que subentende que a história nos propicia narrativas apelativas. Se gostamos de boas histórias, porque vemos tantos jovens e mesmo adultos a torcerem o nariz à História?

Julgo que se prende, sobretudo, com a forma como a História é transmitida aos nossos jovens nas escolas, desde tenra idade. Sempre houve, e ainda há, a ideia de que o professor de história é aquele que dá umas ‘secas’ monumentais, com as aulas limitadas à leitura dos manuais escolares. Para jovens de 10, 11 ou 12 anos, não é atrativo verem-se limitados à leitura de manuais. Só tive noção daquilo que era, realmente, a história a partir do 8º ano de escolaridade, quando o meu professor decidiu ir às fontes, ou seja, estudar um texto do século XV ou XVI, uma pintura, uma fotografia, ver o que dali se retira de história e contextualizar com as respetivas épocas. É, talvez, a forma mais educativa para construir uma aula. A nossa história é tão rica, com tantos episódios que podem ser contados de forma descontraída.

Onde nasceu Afonso Henriques? Terá sido Vasco da Gama o descobridor do Brasil? Enigmas e Mistérios da História de Portugal explicados pelo historiador Ricardo Raimundo
O historiador Ricardo Raimundo.

Esta indiferença para com a História acaba por enviesar a forma como a olhamos?

O facto de se olhar de lado para a História, leva a que se crie desconhecimento e, com este, que se cometam gafes tremendas, até mesmo ao mais alto nível. Hoje, existe uma tendência para interpretar o passado à luz dos acontecimentos do nosso tempo, do nosso quadro mental. Por muito que, aos olhos de hoje, certos acontecimentos sejam encarados como incorretos ou de uma injustiça brutal, temos de nos colocar no quadro mental, por exemplo dos séculos XIV e XV. Não podemos fazer justiça ao passado, pois este aconteceu. Mau é continuarmos a fazê-lo no presente. Já tivemos esse exemplo várias vezes e não aprendemos. Sempre que queremos mexer no passado dá asneira.

O facto de se olhar de lado para a História, leva a que se crie desconhecimento e, com este, que se cometam gafes tremendas.

Aliás, a história quando manipulada pode ser um instrumento perigoso, de manipulação, propaganda.

Sim. Há aspetos que, de um ponto de vista científico, se demonstrou que não correspondem à verdade e que continuam a ser lecionados. Por exemplo, a ideia de que os portugueses estão presentes em África há mais de 400 anos é um engano. Essa ideia nasceu com a I República, enraizou-se com o Estado Novo e perpetuou-se. Somente no final do século XIX, início do século XX, é que houve uma ocupação real do território, ao contrário, por exemplo, dos ingleses que eram mais territoriais. O que havia, até então, era o estabelecimento de feitorias na costa destinadas ao tráfico de marfim, ouro, escravos e pontos de apoios às viagens dos portugueses para outras paragens. Recuando ainda mais na nossa história, a Escola de Sagres é uma criação, não se pode falar de uma instituição organizada, com alunos e mestres. A própria imagem que temos do Infante D. Henrique não corresponderá à sua verdadeira fisionomia. Quanto mais recuamos, mais difícil se torna precisar por escassez das fontes. Há um outro aspeto a considerar, o de que a História é enviesada quando contada pelo lado vencedor.

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O facto de D. Afonso Henriques ser o pai/fundador da Nação mitificou-o? No seu livro apresenta-nos outras possibilidades para a narrativa em torno deste rei, nomeadamente o local de nascimento e mesmo o de ter sido trocado, ainda jovem, pelo filho de um pastor.

Existem várias lendas e várias hipóteses em torno da figura de Afonso Henriques. A nossa história é muito rica, mas acabamos por ter poucos heróis. Afonso Henriques, aparece-nos quase como o pai/fundador, uma figura que origina uma nação. Como diz o Professor José Mattoso se não fosse a vontade e determinação de Afonso Henriques, seriamos uma extensão lógica de Castela e Leão. Sobre Afonso Henriques, uma das lendas prende-se com o local de nascimento. A historiografia do Estado Novo fez de Guimarães o berço da nacionalidade, local do nascimento do nosso primeiro rei, quando, provavelmente, não foi. Uma das hipóteses aponta para a zona de Viseu, por onde andaria D. Teresa na altura do nascimento de Afonso Henriques. Ali, D. Teresa assinou vários documentos. Também se aponta a cidade de Coimbra como eventual lugar do nascimento de Afonso Henriques.

Como diz o Professor José Mattoso se não fosse a vontade e determinação de Afonso Henriques, seriamos uma extensão lógica de Castela e Leão.

Outra hipótese, adianta que o nosso primeiro rei terá nascido com uma enfermidade, uma outra sublinha que terá falecido numa viagem entre Guimarães e Chaves, oportunidade para substituir o infante pelo filho de um pastor, ou pelo próprio filho do aio Egas Moniz que teria sido pai pela mesma altura do conde D. Henrique. Não podemos esquecer as lendas em torno do físico de Afonso Henriques, um homem, dizia-se, com quase dois metros, com uma espada enorme, sendo preciso vários homens para a erguer. Por ter atingido tão grandes feitos, o Conquistador ganhou uma aura de herói quase divino. Aliás, conforme vão avançando os episódios da nossa história, há um sucessivo recorrer a D. Afonso Henriques. Por exemplo, quando fomos para Ceuta, no século XV, há a referência ao Milagre de Ourique e olha-se para Portugal como o país incumbido de levar a Fé de Cristo para outras paragens.

Afonso Henriques
D. Afonso Henriques

Será que em certas circunstâncias a lenda é mais importante na coesão de um povo do que a história?

O pai da historiografia moderna, Alexandre Herculano, dizia que ao contrário daqueles que olhavam para as lendas e mitos como algo a desprezar, ele via neles, por mais infundados que fossem, um fundo de verdade. O historiador dava o exemplo com Brites de Almeida, a Padeira de Aljubarrota que personifica bastante bem o combate contra o invasor castelhano e o seu papel importante no forjar da identidade nacional.

Outra figura maior é Luís Vaz de Camões. O Ricardo dá-nos conta de um facto que nos surpreende, a possibilidade dos restos mortais que homenageamos no túmulo do poeta não serem os dele.

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Como muitas das nossas figuras ligadas à literatura, Camões tornou-se mais importante à posteriori do que em vida. O poeta teve uma vida bastante atribulada e, crê-se, os seus últimos anos foram passados na miséria. Ao morrer, em junho de 1580, terá sido sepultado numa vala comum na igreja do Convento de Santana, na capital. Em 1880, quando se dá a comemoração do tricentenário da morte de Camões e se recupera a importância desta figura, transladam-se alguns restos mortais para o Mosteiro dos Jerónimos. Havendo várias ossadas na referida vala comum era muito difícil identificar quais as que efetivamente pertenciam ao poeta. Aliás, ainda em relação ao poeta, tem uma certa piada colocar Camões como autor de uma expressão que, muito dificilmente, terá sido por ele proferida: “Morro com a Pátria”.

A questão das últimas palavras daria um outro livro.

Sim, existem várias frases atribuídas a figuras da nossa história que não foram proferidas pelos próprios. Por exemplo, o velho chavão atribuído ao Marquês de Pombal, “enterrar os mortos e cuidar dos feridos”, aquando do Terramoto de 1755, terá sido proferido por um conselheiro do rei D. José. Dado Sebastião José de Carvalho e Melo [Marquês de Pombal] ter desempenhado um papel importante na reconstrução de Lisboa, ter-lhe-á sido atribuída a frase. Outro exemplo, a expressão “Deus, Pátria e Família” geralmente atribuída a António de Oliveira Salazar, vem, na realidade, de um presidente brasileiro do início do século XX que, no leito de morte, terá proferido “Deus, Pátria, Família e Liberdade”.

D. Sebastião.
Retrato d'El Rei Dom Sebastião por Alonso Sánchez Coello.

Aquando do desaparecimento de D. Sebastião multiplicaram-se em Portugal as histórias de indivíduos que se fizeram passar pelo monarca. Quer falar-nos de um deles?

Na década de 1580, surge uma figura muito curiosa, um jovem chamado Mateus Álvares, filho de um pedreiro açoriano, que acaba por se fazer passar por D. Sebastião, dadas as semelhanças físicas com o monarca. Mateus viu nessa farsa a oportunidade de ascender socialmente. Esta personagem acaba por mobilizar alguma população junto da Ericeira e Torres Vedras, quase ao ponto de criar um exército e entrar em Lisboa. Acaba por ser esmagado às mãos de tropas castelhanas que, rapidamente, reprimem essa intenção. Temos também o caso de um homem que se dizia português e que apareceu em Veneza. Apresentava parecenças físicas com D. Sebastião, mas acabou por ser rapidamente desmascarado e sentenciado. O facto de não existir uma informação explicita sobre o contexto em que ocorrera a morte de D. Sebastião, se em combate ou no transporte enquanto prisioneiro para uma determinada localidade, dá origem a um dos maiores mitos nacionais, o Sebastianismo.

Existem várias frases atribuídas a figuras da nossa história que não foram proferidas pelos próprios.

Um acidente fatal a cavalo de D. Afonso, filho legítimo de D. João II, terá posto termo a um sonho do monarca para unir a Península Ibérica sob uma mesma coroa, a de Portugal. Quer contar-nos brevemente este episódio e porque considera que possa não ser um acidente?

É verdade. O acidente a cavalo que vitimou D. Afonso em 1491 não deixa de se revestir de acontecimentos estranhos e coincidentes que podem indiciar um atentado. Algumas figuras desapareceram sem deixar rasto. Estamos a falar das figuras mais importantes da realeza tanto portuguesa como castelhana. Em última análise este incidente com o infante D. Afonso não pode ser isolado da morte de D. João II em outubro de 1495, eventualmente vítima de um envenenamento. Desde 1490 que o monarca não se sentia fisicamente bem e acabou por morrer sem deixar um descendente direto que pudesse subir ao trono. Na época, havia o alinhamento de vários fatores que apontavam para uma união ibérica sob a coroa portuguesa.

Aliás o livro entrega-nos várias narrativas de mortes envoltas em mistério.

Exatamente. Por exemplo, o contexto em que ocorre a morte de D. João VI e a possibilidade de o monarca ter sido vítima de um envenenamento. Uma análise recente efetuada aos restos mortais de D. João VI relevou uma grande concentração de arsénio nas vísceras. Contudo, o seu uso também se podia dever a prática médica, o que deixa esta morte envolta em grandes interrogações. Como também a morte de D. Pedro V, aos 24 anos, em 1861, assim como a dos seus irmãos, após uma viagem a Vila Viçosa, aponta para a possibilidade de um envenenamento. O contexto em Portugal era de grande ebulição política. No que respeita à morte do rei D. Carlos, em 1908, apesar de sabermos quem foram os dois autores materiais do regicídio, pesam dúvidas sobre os reais mandantes.

ENIGMAS E MISTÉRIOS DA HISTÓRIA DE PORTUGAL
No seu novo livro Ricardo Raimundo percorre oito séculos da nossa história.

No seu livro introduz a figura de Duarte Pacheco Pereira e coloca-o numa posição que habitualmente cabe a Pedro Alvares Cabral, a da descoberta do Brasil. Há fontes sólidas que corroborem essa hipótese?

Sim, até mesmo devido à obra de que Duarte Pacheco Pereira é autor, Esmeraldo de Situ Orbis. Obra que foi de importância relevante para o contexto científico da época, embora ofuscada pela figura de Pedro Alvares Cabral, pela questão do reconhecimento e oficialização da chegada ao Brasil em 1500. Duarte Pacheco Pereira, lisboeta, era descendente de famílias nobres, foi militar, cosmógrafo e explorador. Em 1498, comandou uma expedição envolta em secretismo com a finalidade de reconhecer os territórios localizados para lá da linha de Tordesilhas. Essa ação teve como resultado prático a chegada ao Brasil, embora não tenha sido tornada pública devido ao contexto político-administrativo que se vivia na época.

Na realidade, algumas figuras sobre as quais afiançamos conhecer-lhes bem a história têm passados menos claros. Uma delas, o Marquês de Pombal. Parece que Sebastião José de Carvalho e Melo não convivia bem com a sua origem…

De facto, Sebastião José de Carvalho e Melo acaba por ter associada à sua ascensão social algumas críticas por parte da alta nobreza que não via com bons olhos o facto de um membro de uma nobreza mais baixa vir a ter tanto relevo na governação. Daí, nascerem histórias como a de que teria sangue de uma escrava negra. Mais tarde demonstrou-se que essa história não tinha fundamento.

Terramoto 1755
João Glama Ströberle - Museu Nacional de Arte Antiga.

Ainda no que respeita a figuras denegridas, D. Carlota Joaquina não era propriamente amada na corte.

Dona Carlota Joaquina, mulher do rei D. João VI, é uma das figuras mal compreendidas porque, para a época, se revelava como uma mulher com determinação, vontade própria, desejo de dar a sua opinião. A sua atitude acabou por dar origem a uma historiografia que a denegriu. Se é verdade que do ponto de vista físico, há fontes fidedignas que não a dotam de grande beleza, já no que respeita ao feitio, terá sido uma figura pouco compreendida. Algumas fontes dizem-na uma criança mimada e, mais tarde, uma mulher com espírito irascível. Os últimos estudos empreendidos em torno da sua figura, mostram-na como uma mulher com vontade própria e de intervir, palco que, até então, estava quase exclusivamente reservado aos homens.

Tendo de passar para o argumento de um filme um episódio da nossa história qual escolheria?

Marcou-me bastante um filme realizado por Manoel de Oliveira, Non, ou a Vã Glória de Mandar [1990], que vai revendo vários episódios da nossa história. Do filme, elegeria o episódio da Batalha de Alcácer Quibir e o contexto de um jovem rei com os ideais de Cavalaria e de Cruzada muito vincados contra os muçulmanos. Como se teriam desenrolado os momentos finais deste monarca?

Em criança tinha alguma figura da nossa história que fosse para si um herói?

Sempre tive um certo interesse por Vasco da Gama e quão marcante foi para a nossa história a chegada à Índia. Sobretudo, fascina-me o choque cultural com a chegada de um europeu, do final do século XV, a um contexto completamente diferente e de como terão decorrido as primeiras trocas de informação e o início do comércio naquelas paragens.